A estética era de reality show

vulvamtilliandum
7 min readApr 14, 2022

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Escrever sobre um acontecimento polêmico depois que ele esfria acaba funcionando como um teste para a relevância dele. O tapa que Will Smith deu em Chris Rock durante a cerimônia do Oscar 2022 foi um dos assuntos mais comentados por intelectuais negras e negros e ativistas antirracistas.

Os primeiros posicionamentos foram os mais variados possíveis. Houve quem duvidou da veracidade dos fatos; houve quem repudiou o que entendeu como uma agressão infundada de Will Smith contra Chris Rock, afirmando que nenhuma violência é legítima; houve quem defendeu que a violência é um dado concreto de nossa realidade, que há violências legítimas e a de Will Smith era uma dessas, pois seu tapa seria uma justa reação à violência sofrida por sua esposa; houve quem celebrou o tapa como algo positivo para as mulheres pretas, que finalmente testemunhavam uma mulher preta ser defendida por seu homem diante do mundo todo; houve quem considerou como uma mera picuinha de gente rica e, portanto, irrelevante para os pobres; também houve quem considerou um espetáculo em que pretos se prestavam ao papel ridículo de brigar entre si para entreter brancos. As interpretações foram inúmeras e quase tão variadas quanto o número de comentadores.

As notícias mais recentes sobre o caso anunciaram que Will Smith renunciou a sua condição de membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas estadunidense, que promove a premiação do Oscar, mas, mesmo assim, a equipe gestora da instituição decidiu puni-lo com o impedimento de participar dos eventos da Academia por 10 anos. Até o momento, não houve manifestação oficial sobre a conduta de Chris Rock.

Penso que em todo caso polêmico há algo de muito importante acontecendo e, por isso, é polêmico. Algo que, mesmo as pessoas não conseguindo nomear e explicar, mexem com elas de maneira profunda. Algo que, se desvendado, se devidamente destrinchado e compreendido, pode ameaçar alguma estrutura social.

Já faz um bom tempo que a indústria do audiovisual encontrou um novo nicho de manipulação dos afetos e dos debates políticos. Não se limitaram às novelas, filmes e seriados. Criaram também a figura do reality show, esses programas degradantes que se propõem a simular interações sociais verdadeiras entre pessoas comuns ou famosas em ambientes herméticos e amplamente vigiados, normalmente como um jogo.

O tapa de Will Smith em Chris Rock tomou feições de um grande reality show, daí o fundamento das desconfianças de simulação. E acaso as pessoas comentariam com o mesmo nível de engajamento emocional se soubessem que se trata de uma simulação? Por que é preciso fazer um reality show parecer verdadeiro? Entre as respostas certamente estão: desgastar emocionalmente aquelas e aqueles que se importam, banalizar os assuntos politicamente relevantes, distrair a atenção de outros assuntos politicamente relevantes, e coletar informações sobre a conduta dos espectadores.

Poucos indivíduos são tão treinados para controlar e manipular as próprias emoções como as atrizes e atores profissionais. Apesar disso, o ganhador do oscar por melhor atuação em 2022 foi justamente aquele que teria se descontrolado ao ouvir uma piada contra sua esposa.

Eu não costumo comentar as polêmicas surgidas em programas de reality show, mesmo que envolvam violências contra mulheres negras e, portanto, eu poderia parar por aqui. Mas o modo como os afetos dos espectadores são manipulados é tão violento e o sofrimento coletivo que provoca tão intenso, que às vezes é difícil ficar indiferente.

Quando eu soube do tapa de Will Smith a Chris Rock, a primeira questão que me coloquei foi: o que aconteceu ali?

A versão “oficial” foi: Chris Rock fez uma piada com o visual capilar de Jada Pinkett, careca, que estaria ostentando tal visual em razão de uma doença, sabida por todos, inclusive pelo próprio Chris Rock. Imediatamente, Will Smith, marido de Jada, ultrajado pela piada, levanta-se de seu lugar, vai até o palco, desfere um tapa cinematográfico no rosto de Chris Rock, retorna ao seu lugar e de lá ainda grita a plenos pulmões para que ele, Chris Rock, tirasse o nome de sua esposa de sua boca.

Andrea Dworkin já dizia que a violência é linguagem e é ação. E o que os homens mais temem e mais veneram no mundo é sua própria violência, a violência masculina. Os homens se tornam homens praticando violência entre si e contra mulheres. Não ser capaz de desenvolver a condição psicológica para a prática da violência os remete imediatamente à condição de feminilidade e ser feminina é estar sujeita à violência masculina. Crianças do sexo masculino se tornariam meninos aprendendo a praticar violência. Aprendem que, se não forem capazes de aplicá-la, a sofrerão ainda mais. O menino percebe que sua mãe é incapaz de protegê-lo da violência do pai e de outros homens. A partir da percepção de que ser mulher é uma condição ruim, de vulnerabilidade, de submissão, de tédio, de inércia e passividade, ele é levado a se afastar do mundo das mulheres e a se integrar cada vez mais no mundo dos homens. E para se integrar ao mundo dos homens ele necessita obrigatoriamente aprender a repudiar e a odiar a feminilidade. Ser homem não é uma opção para os indivíduos que nasceram com vulva, por mais que eles rejeitem a feminilidade; apenas aos que nasceram com pênis.

A violência masculina é um dos principais fatores heterossexualizadores das mulheres, cujos corpos são o principal campo de batalha onde os homens travam suas lutas e fincam suas bandeiras. A fim de evitar sofrer violência de todos os homens possíveis, a mulher se entrega a um para assim, quem sabe, diminuir o número dos seus possíveis agressores. Isso é o que os homens brancos prometem às mulheres brancas: ser o único grupo legítimo para praticar violência impunemente contra elas. Trata-se de uma diminuição considerável de agressores, uma barganha que a grande maioria das mulheres brancas têm dificuldade de resistir.

Quando o jogador de futebol Robinho foi condenado na Itália por estuprar uma mulher branca, ainda que uma mulher branca de status social inferior, o que os tribunais italianos afirmaram foi o monopólio dos homens brancos de fazer o que bem entendem com as mulheres brancas. A decisão judicial foi aplaudida amplamente por pessoas brancas. Mas muitos homens negros consideraram uma decisão racista. E não estavam errados. Ao protestar conta a decisão judicial, homens negros estavam reivindicando que homens brancos e homens negros fossem tratados com isonomia no sacrossanto direito masculino de maltratar mulheres, símbolo máximo de isonomia, mas esse é exatamente um dos pontos mais centrais do sistema patriarcal. Se os homens brancos perdem esse monopólio, como poderão garantir que mulheres brancas continuem trocando submissão por proteção?

Quando Will Smith desfere um tapa em Chris Rock, um ato de virilidade, em aparente defesa de Jada Pinkett, ele, em outras palavras, e de forma simbólica, se reivindica tão homem quanto os homens brancos. Uma parcela dos homens negros vibra, levanta-se esfuziante de suas arquibancadas. O mesmo fazem as mulheres negras que viram ali o prenúncio — irreal dentro do patriarcado-racista-capitalista, diga-se de passagem — de, assim como as mulheres brancas, ter homens que as protejam, que intimidem outros agressores. E a resposta dos homens brancos não tardou: “vocês homens pretos não têm permissão para exibir virilidade na nossa fuça, em nosso território. Tome aqui 10 anos de punição!”. A punição fez o acontecimento com ares de reality show parecer um pouco mais real. E com isso, tudo voltou a ser como antes.

Todas as mulheres, e não apenas as brancas de elite, desejam reduzir o número dos seus possíveis agressores trocando submissão por proteção, uma alternativa mais fácil e cômoda para sobreviver numa sociedade misógina. Mas este é um privilégio que, dentro do patriarcado-racista-capitalista, é concedido pelos homens da raça superior apenas a mulheres mais próximas de si. E elas pagam um preço: só existem se renunciarem à luta por autonomia política, algo que só pode surgir coletivamente. Elas existem como sombras, ou objetos de decoração ou simples fantoches.

Fanon certa vez disse, analisando a psicologia do indivíduo colonizado, que o colonizado é um invejoso. Acontece que desejar o que o colono tem não retira poder dele, ao contrário, reforça-o. Desejar ocupar um lugar parecido ao da mulher branca é uma ilusão que deveria ser abandonada pelas mulheres racializadas. Na sociedade dominada por homens, forjada sobre a misoginia mais profunda, e cuja violência é a principal linguagem, mulheres, em especial as racializadas, sempre serão o alvo principal de qualquer homem, inclusive os de sua própria raça. Mulheres não são frágeis, são fragilizadas; não são vulneráveis, são vulnerabilizadas; não são fracas, são impedidas de se fortalecerem. Portanto, não faz sentido conceder poder a eles para que nos “protejam”. É a própria dominação masculina que precisamos enfrentar.

A base da dominação masculina é a misoginia, o ódio mais profundo e desavergonhado pelas mulheres. É o ódio não só contra as mulheres que se afirmam como pessoa, como ser humano pleno e digno de direitos, que não se definem em relação aos homens, que não se resumem a um objeto de admiração e apreciação. Não é um ódio direcionado exclusivamente contra as feministas, mas a todas as mulheres.

Enfrentar a dominação masculina e, portanto, restituir poder às mulheres, envolve nos livrar da misoginia profundamente internalizada; nos afastar o quanto possível de suas fontes e de seus repetidores; envolve desaprender a ter prazer em ser a mulher definida pelos homens; envolve ter uma atitude conscientemente positiva frente às mulheres que não se deixam usar pelos homens e que, por isso, são as mais difamadas; envolve direcionar nossa lealdade ao nosso próprio grupo sexual e racial, no caso das mulheres racializadas; envolve nos definir em nossos próprios termos, encontrando e criando espaços onde as mulheres possamos experimentar pensar livremente e sem sabotagens.

É tudo o que a indústria de entretenimento dos homens não nos oferece.

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