Algumas notas sobre o ato dos casais darem as mãos na rua

vulvamtilliandum
6 min readJul 1, 2022

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Há muitos fenômenos sociais que, de tão comuns, deixam de ser notados ou questionados. Ninguém acha estranho um casal heterossexual andar de mãos dadas na rua. Ao contrário, este é o comportamento esperado socialmente. E se é conhecido o fato de que se trata de um casal, não estar de mãos dadas leva as pessoas a fazerem várias inferências negativas sobre a intimidade da dupla. Assim, por essas e outras razões elencadas adiante, é possível afirmar que esse ato que parece tão espontâneo para a maioria, fruto de uma escolha íntima e individual, na realidade, é resultado de pressões sociais. Mulheres e homens ligados por suas relações sexuais dão as mãos nas ruas atendendo a certas pressões que não existem, ou são diferentes, quando o tipo de relação entre os adultos é de natureza não sexual.

Questionando as seguidoras do meu perfil @vulvamtilliandum, recebi dezenas de respostas e a maior parte delas defendia que o dar as mãos na rua tinha a ver com afeto e carinho. Algumas diziam que o ato representava uma relação de posse do homem em relação à mulher. E outras, comparando com certas circunstâncias em que dar as mãos na rua é obrigatório ou altamente recomendado, como às crianças, pessoas muito idosas e alguns tipos de deficientes, concluíram que se trata de uma relação de proteção.

Carinho, proteção e posse. Todas essas respostas me pareceram verdadeiras em alguma medida e me suscitaram uma outra questão. É possível tratar uma pessoa, ao mesmo tempo, como posse (objeto, coisa) e ainda ser carinhoso e protetor em relação a ela?

Tentarei responder essas perguntas mais adiante. Por ora, quero tecer algumas palavras sobre a rua.

Pateman (1993) nos conta que a sociedade moderna foi forjada sobre duas dimensões antagônicas e interdependentes: a esfera pública e a esfera privada, doméstica. A dimensão pública da vida social foi construída por e para atender as necessidades da pessoa adulta, física e mentalmente capaz, do sexo masculino. No espaço público, todos os homens, enquanto homens, estão em condição de igualdade entre si: são indivíduos, sujeitos de direitos e deveres entre si e reconhecem uns aos outros dessa forma — De fato, grande parte da luta dos homens negros consiste em conquistar o direito de acessar o espaço público nas mesmas condições que os homens brancos.

Trata-se de uma dimensão que, do modo como foi institucionalizada, é hostil em diferentes graus para crianças, pessoas idosas, pessoas deficientes, mulheres e todos os “desiguais”. Esses grupos, portanto, desfrutam apenas parcialmente do espaço público e necessitam de proteção para moverem-se por ele com alguma segurança.

Crianças podem desaparecer, ser atropeladas, raptadas, assediadas, agredidas, caladas, imobilizadas, não conseguir usar os banheiros públicos com conforto mínimo. Pessoas idosas, com mobilidade reduzida, podem ser empurradas, atropeladas, negligenciadas, sua fragilidade pode ser explorada. Pessoas deficientes podem não conseguir sequer se locomover no espaço público, e se conseguirem, estão sujeitas a tudo o que crianças e idosos estão sujeitos, podendo enfrentar ainda mais situações hostis.

As mulheres, por outro lado, enfrentam uma situação diferente. Sua vulnerabilidade não decorre do fato de estarem em desenvolvimento, como uma criança, ou fragilizadas pela idade, como uma pessoa idosa, ou possuírem uma deficiência limitante. Sua vulnerabilidade decorre do fato de serem um tipo de pessoa definido, dentro da cultura patriarcal, por sua condição sexual. Não são seres humanos plenos. Antes, são seres sexuais. Assim, elas podem ser sexualizadas pelos homens, e são, de inúmeras formas: por olhares invasivos, por sons e palavras inapropriados, por toques indevidos e, obviamente, por violências sexuais ainda mais aviltantes e cruéis, como o estupro e o feminicídio.

A dimensão pública da sociedade é onde o dinheiro circula e a política acontece; é onde as instituições econômicas, de poder, trabalho, cultura, lazer, saúde, educação etc estão e podem ser acessadas. Mas o direito de acessar o espaço público é regulado pelos homens e pela violência que praticam, o que gera insegurança e medo na maioria das pessoas, as quais são obrigadas a internalizar e naturalizar tais sentimentos, até a condição de não pensar mais sobre eles. A criança mesmo, a partir do momento que compreende que o espaço público é um risco para sua sobrevivência, tende a sentir-se muito mais confortável quando está de mão dada a uma figura de apego sua. Não é preciso mais obrigá-la a dar a mão.

Tendo isso em vista, não admira que uma mulher sinta-se mais segura e amada quando está de mão dada ao seu parceiro íntimo, e que considere esse gesto um ato de cuidado, carinho e proteção.

Mas como o simples ato de andar de mãos dadas com um homem pode proteger uma mulher? O ato de dar as mãos sinaliza para outros homens que aquela mulher está sexualmente indisponível, que seu corpo não pode ser acessado de nenhuma forma, caso contrário, a abordagem sexual do outro homem pode despertar uma legítima reação violenta da parte do homem cuja mulher foi abordada. O ato de dar as mãos é um código masculino.

Se, por engano, num ambiente público, um homem aborda sexualmente uma mulher indisponível, normalmente é ao homem que ele pede desculpas. E se ela está momentaneamente sozinha ou não conectada fisicamente com esse homem seja pelas mãos dadas, pelo braço dele sobre os ombros dela ou uma proximidade física característica de uma relação de natureza sexual, podendo levar o outro homem ao erro, as desculpas deste homem têm mais chances de serem aceitas: houve uma falha na comunicação simbólica que indicava a indisponibilidade da mulher.

Algumas mulheres heterossexuais, de forma mais ou menos intuitiva, podem sentir incômodo no ato de dar a mão aos seus parceiros no espaço público. Não veem a si mesmas como dependentes e carentes de proteção. Elas percebem mais nitidamente que o gesto reforça e legitima a hierarquia existente e rebelam-se contra o símbolo, recusando-se a dar a mão. Com algum gasto de energia, enfrentam o risco da importunação tanto de outros homens quanto de pessoas conhecidas cheias de hipóteses sobre a “saúde” de seu relacionamento.

E isso nos traz a nossa pergunta anterior, é possível tratar uma pessoa, ao mesmo tempo, como posse (objeto, coisa) e ainda ser carinhoso e protetor em relação a ela? Certamente. Essa prática é chamada de paternalismo. Gerda Lerner ensina que nesse tipo de relação, o grupo dominado troca submissão por proteção, assim como em alguns sistemas de escravidão (2019, p.290). E, de fato, muitos intérpretes da cultura brasileira já observaram como o paternalismo é um traço forte da cultura nacional. É o paternalismo que permite patrões chamarem uma trabalhadora cuja exploração do seu trabalho doméstico é análoga à escravidão de “praticamente um membro da família”, ou estabelecer relações de afeto com uma pessoa cuja raça e/ou classe social a pessoa menospreza.

A maior parte das pessoas dominadas ainda não considera sua condição subalternizada uma aberração, de modo que seu pleno direito à dignidade humana exige mudanças radicais. A prática dominante ainda consiste em meramente administrar os efeitos mais perversos da manutenção de uma ordem sexual injusta e insustentável.

O ato de casais heterossexuais andarem de mãos dadas no espaço público é um gesto que contém altas doses de compulsoriedade. Quando casais heterossexuais andam de mãos dadas, eles sinalizam publicamente que sua relação é de natureza sexual, que praticam, ou simulam praticar, o sexo reprodutivo. Não se trata de um gesto meramente aceito, ele é requerido socialmente. As pressões provocadas pelos riscos no ambiente público, mormente a violência masculina de homens anônimos, e também a expectativa social muitas vezes escondida atrás de um: “vocês brigaram? não estão de mãos dadas!”, ou “ela/e não gosta tanto assim de você: não te dá a mão na rua!” cumprem a função de provocar o gesto.

Mas o símbolo normalmente muda sua mensagem conforme muda seu contexto. Assim, quando Lésbicas e gays andam de mãos dadas nas ruas, a despeito do enorme risco desse ato atrair a violência masculina, eles sinalizam que sua relação também é de natureza sexual, e que eles não são heterossexuais, que o sexo que eles praticam não é e não simula o sexo reprodutivo. É uma forma de marcar uma posição política e visibilizar uma forma de união contra-hegemônica. Diferentemente do que acontece com casais heterossexuais, nem sempre dar as mãos gera conforto, paz e tranquilidade para Lésbicas e gays. Menos ainda a certeza de que situações de violência serão menos prováveis.

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