“Me confundem com mulher, que alívio”

Chico César fez uma publicação ontem que desconfio representar o sentimento de muitos homens, principalmente dos homens negros: uma suposta culpa ou vergonha por ser homem e a busca de algum alívio através da aparência feminina, ou vista como feminina. A despeito do gigantismo e brilhantismo desse artista, não pude ignorar que esse modo de enxergar contribui para a opressão das mulheres. E, no entanto, esse pensamento recebeu quase 4 mil comentários elogiosos.

Sim, a culpa é dos homens.

Foram eles que criaram as principais instituições que dão sustentação às injustas sociedades atuais (instituições políticas, econômicas, judiciárias, culturais, religiosas etc ,etc), em momentos históricos em que as mulheres estavam amordaçadas pelas leis masculinas profanas e divinas. Quando lhes era permitido falar, era para dizer o que os homens queriam ouvir. O modelo de sociedade que temos hoje ganhou sua forma mais desenvolvida na Europa às custas das mulheres e contra elas. Uma vez implantado nos países colonizados, o modelo foi atualizado e além da exploração das mulheres, incorporou a exploração dos povos racializados, de ambos os sexos. E, ainda hoje, é a branquitude masculina que dirige as mais ricas, importantes e coercitivas instituições de poder.

Homens racializados e/ou empobrecidos, porém, têm a garantia assegurada pelo Estado e pelo capital de ter ao menos uma mulher para explorar. Pode ser a mãe, a esposa, a irmã, a filha, a vizinha, a empregada, a religiosa, qualquer mulher na prática. Esse diferencial de poder entre homens e mulheres não é pequeno. É simplesmente o que permite que homens de todas as raças e classes sociais continuem dando sua parcela de contribuição na sustentação desse modelo de sociedade.

Não é possível manter as mulheres no grau de opressão que estamos sem desumanizá-las desde o nascimento, sem incutir nelas o auto ódio, sem fazê-las crer que seus corpos e sua inteligência não valem nada a não ser servir aos homens. Não é possível fazer isso sem o terrorismo masculino consistente nas centenas de milhares de estupros anuais, nos milhares de feminicídios, na normalidade da agressão e espancamento de mulheres por seus maridos, pais, filhos, irmãos; na pedofilia praticada principalmente por homens próximos e até íntimos das crianças…. os crimes que os homens cometem contra as mulheres são infinitos e de uma criatividade sem par na história dos crimes. Nenhuma das atrocidades cometidas contra pessoas do sexo masculino é desconhecida das mulheres. NENHUMA. O corpo das mulheres é o próprio campo de treinamento onde os homens ensaiam suas guerras. Eles nos declararam suas inimigas há tempos demais e isso, até o momento, não mudou.

Se, me permitindo imaginar, Chico César me perguntasse o que uma mulher negra feminista como eu espera dos homens negros, eu diria que não espero culpa e nem sentimento de alívio ao ser confundido com uma mulher. Sentir-se mulher só pode ser alívio para quem ignora completamente o quão desesperador é ser mulher numa sociedade misógina. E só é possível ignorar porque não estão escutando as mulheres.

Não espero que os homens negros sintam-se culpados por aquilo que não podem mudar: seu corpo, seu sexo, sua cor. Espero que eles se responsabilizem pelo que, sim, eles podem e devem ajudar a mudar: essa cultura misógina.

Enquanto parecer mulher for um alívio para qualquer homem, estamos conscientes de que eles estão longe de baixar suas armas contra nós.