Mulher clitoriana e mulher vaginal[1]

vulvamtilliandum
58 min readJan 31, 2021

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Autora: Carla Lonzi, Escritos de “Rivolta Femminile”

Tradução de Vulvam Tilliandum[2]

O sexo feminino é o clitóris, o sexo masculino é o pênis.

A vagina é a cavidade do corpo feminino que recebe o esperma do homem e o canaliza para o útero para que ocorra a fecundação do óvulo. Através dessa cavidade, o corpo do filho sai do corpo da mãe.

O instante em que o pênis do homem expele o esperma é o momento do seu orgasmo. A vagina é, portanto, aquela cavidade do corpo feminino na qual, simultaneamente com o orgasmo masculino, se inicia o processo de fecundação.

No homem, o mecanismo do prazer se encontra estreitamente vinculado ao mecanismo reprodutivo; na mulher, no entanto, os mecanismos de prazer e de reprodução se comunicam, mas não coincidem.

Impor às mulheres uma coincidência que não pertence à sua fisiologia tem sido um ato de violência cultural que não encontramos em nenhum outro tipo de colonização.

“Antes fomos camaradas,

mas agora eu vos dou ordens

porque sou um homem — vedes -

e em minha mão está a navalha

e eu vos opero.

Vosso clitóris, tão zelosamente guardado,

vos arrancarei e atirarei por terra

porque hoje sou um homem.

Meu coração é de pedra:

como eu poderia, a não ser, vos operar?

Então vossa ferida se curará

e eu saberei muitas coisas:

saberei quem se cuida

e quem não se cuida.”

(Canto de iniciação das senhoras que fazem a excisão do clitóris das meninas Manja, Ubangi, na África.)

“Não faleis dessa maneira, irmãs,

que meu coração treme.

Meu terror é grande.

Oxalá me convertesse em pássaro!

Quão rápido fugiria voando!”

(Canto ritual das jovens Manja durante o ritual de ablação do clitóris)

A colonização atingiu seu auge quando a mulher, despojada da possibilidade de expressar sua própria e autônoma sexualidade, foi proibida de recorrer a soluções abortivas. Um processo de gestação indesejado é, por si só, um ato de opressão — que responde à satisfação sexual e psicológica do homem patriarcal. Negar à mulher o direito de interromper esse processo é mais um ato opressivo, que revela a crise dos valores da relação amorosa, com os quais a cultura masculina encobriu sua imposição de um modelo sexual.

A mulher, despojada dos meios para descobrir e manifestar sua própria sexualidade, adota o modelo sexual imposto pelo homem, aceitando, como características do seu ser feminino, a renúncia e a submissão.

Ao experimentar um prazer que é mera resposta ao prazer do homem, a mulher se perde a si mesma como ser autônomo, exaltando a complementaridade do macho, e encontrando nele a motivação da sua existência.

A cultura sexual patriarcal, por ser rigorosamente reprodutora, criou para a mulher o modelo do prazer vaginal.

Contraceptivos, aborto, esterilização, revelam uma incongruência no mundo patriarcal: põem em relevo que não podemos identificar reprodução e prazer. Contudo, em vez de questionar o modelo sexual reprodutor como modelo “natural”, o que eles fazem é ratificá-lo mobilizando uma série de medidas que transformam o ato de reprodução em não-reprodutivo.

A sexualidade de tipo reprodutivo se manifesta sem rodeios: é uma cultura cujos valores e tabus refletem um conceito de “natureza” elaborado segundo os fins da própria civilização que a origina.

Com o controle da natalidade, as mulheres, que antes viram sua sexualidade desvalorizada, veem desvalorizada também a maternidade, posto que o mundo vê seu cataclismo mais próximo na superpopulação[3].

É assim que os papéis de esposa e mãe, nos quais a mulher deveria realizar-se no mundo patriarcal, correm o risco de converter-se em uma estrutura alienada: a liberdade sexual no casamento e a maternidade livremente decidida tendem a restaurar a dignidade social a estes papéis, mas não são substitutos verdadeiramente libertadores, são meras reformas.

Enquanto o mundo patriarcal e sua cultura, para encontrar remédio para o problema demográfico, não se arriscam a conceber qualquer mudança na cultura sexual que sirva para liberar o plano do prazer da condenação reprodutiva, a mulher descobre a circunstância para dar aquele salto de civilização que corresponderia à sua entrada como sujeito na relação erótica.

Assim, um órgão de prazer independente da reprodução, o clitóris, perde o papel secundário e transitório que detinha dentro da sexualidade feminina que havia sido decretado pelo patriarca e torna-se o órgão sobre o qual a “natureza” autoriza e solicita um tipo de sexualidade não reprodutiva.

A função do prazer ligado à reprodução se distingue da função do prazer desligado dela: a primeira garante a perpetuação da espécie, a segunda expressa uma necessidade biológica fundamental no indivíduo.

A complementaridade é um conceito que diz respeito à mulher e ao homem no momento reprodutivo, mas não no erótico-sexual.

A mulher se pergunta: sobre que base se tem postulado que o prazer clitoriano expressa uma personalidade feminina infantil e imatura? Seria, por acaso, porque não corresponde ao modelo sexual reprodutor? Ora, o modelo reprodutivo não é aquele em que a relação heterossexual se cristalizou — mesmo quando o fim reprodutivo é cuidadosamente evitado — de acordo com a clara preferência do pênis hegemônico? O prazer clitoriano, por sua vez, deve seu descrédito ao fato de que não é funcional para o modelo de genitalidade masculina.

O comportamento erótico masculino em relação à mulher consiste, por um lado, em excitá-la e, por outro, fazê-la submetida e dependente. Essa correlação abre à mulher a possibilidade de uma relação sexual psiquicamente aceitável.

Não é necessário que a mulher se valorize através da atenção que o homem lhe dedica nos rituais de galanteio. Se, de fato, não estivesse tão inferiorizada e coisificada, a adulação masculina já não serviria como compensação.

Para gozar plenamente do orgasmo clitoriano, a mulher deve alcançar autonomia psíquica em relação ao homem. Esta autonomia psíquica é tão inconcebível para a cultura masculina que é interpretada como rechaço ao homem ou como uma suposta inclinação pelas mulheres. Por isso o mundo patriarcal lhe reserva o ostracismo com o qual condena todos aqueles que suspeita ter uma inclinação à homossexualidade.

Não nos pronunciamos sobre a heterossexualidade: não estamos tão cegas para não ver que é um pilar do patriarcado, nem somos tão ideológicas para rejeitá-la a priori. Cada uma de nós pode examinar e ver o quanto o patriarca lhe agrada, ou desagrada, e o quanto o homem lhe agrada ou desagrada.

Do ponto de vista patriarcal, se considera mulher vaginal[4] àquela que manifesta uma sexualidade correta, enquanto a clitoriana representa uma sexualidade imatura, masculinizada e frígida, segundo a psicanálise freudiana. O feminismo, pelo contrário, afirma que a verdadeira avaliação dessas respostas à relação sexual com o sexo opressor é a seguinte: a mulher vaginal é aquela que, em cativeiro [isto é, no casamento ou na união heterossexual], é levada a uma atitude consentidora com o gozo do patriarca. As sugestões emotivas de integração ao outro dominam a mulher passiva, mas a mulher clitoriana não transige e se expressa através de uma sexualidade própria, diferente do coito. Entre essas duas respostas à condição e à cultura sexual masculina, se encontram todas aquelas mulheres cuja situação sexual reflete pouca possibilidade de se identificar com o fenômeno [do orgasmo vaginal], e por uma infinidade de circunstâncias subjetivas e objetivas chegam, inclusive, à negação absoluta de qualquer tipo de sexualidade.

Inconscientemente, a mulher percebe o ato de submissão necessário para que ela tenha acesso ao prazer heterossexual.

O ideal monogâmico que é imposto à mulher encontra um ponto de união com sua autenticidade: de fato, lhe possibilita enobrecer em uma relação “única” sua dedicação ao outro, dedicação que se estendida a mais homens perderia seu valor ético de escolha “particular” e “particularmente” motivada, para revelar-se como um condicionamento generalizado das mulheres em favor do homem.

A mulher monogâmica que Engels fala como portadora do valor do casal é a mulher colonizada pelo sistema patriarcal.

O ciúme masculino dificilmente desaparece mesmo quando a mulher afirma ter tido uma relação sexual sem maiores implicações. Porque o homem sabe que, para as mulheres, na cultura sexual vigente, não existe uma relação desprovida de implicações: o homem toma, a mulher se entrega.

Todos os apelos para ativar a emancipação da conduta feminina (como por exemplo, “tomar a iniciativa “) encontram uma compreensível resistência nas mulheres. Na verdade, o que pode significar para uma mulher solicitar de um homem uma relação sexual, se logo o que se produz entre ambos será uma relação sexual conduzida pelo homem?

A mulher clitoriana representa todo o autêntico e inautêntico do mundo feminino que logrou separar-se do visceralismo com o homem. Autenticamente, porquanto reivindica a si mesma; alienando-se porque simula no terreno do prazer, cobiça o nível do homem no terreno cultural e social.

Exigir do homem liberdade de aborto para resolver o problema da gestação não desejada é algo tão absurdo quanto exigir um pênis robusto, capaz de manter-se ereto e em distintas posições, até conseguir levar a mulher ao orgasmo.

O orgasmo vaginal, como problema científico, já equivale à disputa em torno do sexo dos anjos. Existem mulheres para as quais o condicionamento cultural para gozar durante o coito é eficaz, e há outras — a maioria — para as quais não é. Neste último caso, ou a mulher encontra em si mesma uma condição autônoma, independente do homem, e reivindica seu próprio orgasmo, o orgasmo clitoriano, ou hesita em reconhecer-se no próprio sexo, detendo-se em estágios intermediários, dolorosos, caóticos.

Para nós, é importante afirmar o próprio sexo e não tanto apenas satisfazê-lo. Que significado libertador pode ter a solução apresentada pela mulher emancipada?

Numa presumida igualdade com o homem, que põe em prática diversas técnicas para variar o prazer sexual, a mulher alcança a satisfação do seu orgasmo clitoriano, mas, apesar disso, lhe falta consciência de estar expressando uma sexualidade própria. Por esta razão permanecerá igualmente submetida ao homem e ao modelo sexual masculino: ela redobrará seus esforços para fazer com que o pênis esqueça sua traição e o homem esqueça sua falta de idoneidade, pela qual ela se sente humilhada.

A mulher clitoriana que se converte em vaginal neutraliza sua criatividade e repropõe, no plano cultural, a dependência do mundo masculino que sua autonomia sexual havia posto em dúvida no plano erótico.

A mulher vaginal, que tem reagido voluptuosamente na opressão, é a mulher duplamente enganada. Ela tem colocado à disposição do homem, de sua missão particular, toda a criatividade da qual um ser humano é portador, sem encontrar jamais a força de querer para si a gama inteira da experiência criativa, que é, sobretudo, a concentração sobre si mesma. De fato, a mulher vaginal experimenta angústia e culpa diante de qualquer tipo de prazer autônomo, associando-se ao homem em seu desprezo pelo orgasmo clitoriano, já que teme descobrir-se como um ser humano independente do destino do casal, isto é, da união gratificante com o ser superior.

A mulher que no casamento se declara carente de recursos e confiança em si mesma, enquanto leva uma vida de cão para potencializar os recursos e a autoconfiança do marido, deve compreender que foi acostumada a realizar a transferência que todo homem exige de toda mulher. Experimente eliminar a transferência e verá que todas as suas energias confluirão novamente para ela.

Para nós, a afirmação do próprio sexo não significa o empobrecimento do encontro entre homem e mulher, porque não perdemos de vista a problemática da relação humana com todos os seus imprevistos, e desejamos, inclusive, revalorizá-la. Nesta época em que o mundo dos sentimentos vai se arrastando até desembocar em uniões míticas, em relações monógamas de chantagem e oportunismo, a assim chamada relação humana é amplamente divulgada, mas, no entanto, só aparece cindida do erotismo, tendo se convertido em um processo que se extingue na formalidade, sem nenhuma saída vivificante.

A mulher vaginal é relutante em se questionar sobre sexo porque, ao imbuí-lo de sentimento, tem medo de privá-lo da transcendência com a qual o cercou. O homem, naturalmente, se mantém alerta e se assegura de que seu objeto, a mulher, não perca a ignorância que o torna valioso e inofensivo. O homem confia no sentimento da mulher para que ela goze, não no conhecimento que ela eventualmente tenha de sua sexualidade.

Sugerimos meditar sobre o quão tedioso é um coito prolongado. A multiplicidade de variações do amor não passam de fanatismos masculinos e grosserias, sobretudo quando não garantem o orgasmo da mulher.

Como pode a mulher vaginal hesitar em tomar consciência de uma problemática tão ampla quanto a da mulher na sexualidade? Como justifica que a humanidade feminina seja em sua maioria dispersada e sofredora em sua sexualidade? É dolorosíssimo identificar-se com a condição de milhões de mulheres para as quais falta um ponto fixo de referência no prazer; mas não é mais possível satisfazer-se com as razões patriarcais, que as acusa de estar equivocadas, ou em lenta transição da repressão à normalidade. Milhões de mulheres que há muito tempo expressam um mal estar profundo e universal pelo sexo são uma constante na história da humanidade feminina que denuncia e reafirma a necessidade de uma transformação do mundo.

A categoria da repressão, adotada pela cultura masculina para explicar as disfunções que surgem na relação entre ambos os sexos, é uma nova cortina de fumaça para ocultar o drama da opressão da mulher.

O estudo da sexualidade infantil mostrou ser uma ilusão patriarcal a racionalização da opressão da mulher como consequência de uma infância não reprimida. O fato de uma infância reprimida apresentar resultados “anormais” no plano sexual omite a consideração dos resultados ainda mais “anormais” que apresenta uma infância não reprimida, tendo em vista os propósitos de uma civilização na qual a mulher deve estar submetida. De fato, se a menina mantida isolada do homem, na proibição do autoerotismo e dos jogos sexuais, na mortificação da sua personalidade criativa, podia crescer mitômana o suficiente para submeter-se ao macho e obter sensações gratificantes com ele, assim também a menina que começa a ser educada fora de tais tabus não pode deixar de atravessar uma série de conflitos e respostas negativas uma vez que a cultura pretende que o resultado da sua liberação infantil seja uma adesão espontânea à sujeição e ao papel imposto.

“Atingindo ou não o orgasmo, muitas mulheres se satisfazem ao constatar que o marido ou companheiro sexual gozou no ato e que tornaram possível o prazer do macho. Temos biografias de pessoas casadas há muitos anos sem que as mulheres jamais tenham obtido um orgasmo sequer; e, no entanto, os casamentos continuaram de pé, em consideração ao alto nível de harmonia familiar” (Alfred Kinsey).

Para a mulher, o feminismo ocupa o lugar que a psicanálise ocupa para o homem. Nesta última, o homem encontra as razões que tornam sua supremacia científica e inatacável, como uma ordem que corresponde definitivamente a liberdade de todos; no feminismo, a mulher encontra a consciência coletiva feminina que elabora os temas de sua liberação. A categoria de repressão na psicanálise é equivalente à do senhor-escravo no marxismo: ambos têm como foco uma utopia patriarcal na qual, a mulher, de fato, se encontra como o último ser humano reprimido e submetido sustentando o esforço colossal do mundo masculino que rompe por si mesmo as correntes da repressão e da escravidão.

Sem a abolição do esquema sexual masculino e sem uma tomada de consciência da mulher vaginal, o feminismo não existe. E o patriarcado como época histórica está muito longe do fim. Isso significa que o modelo de matrimônio existente persistirá como modelo de relação que só é questionado enquanto instituição, mas não enquanto padrão de relações sexuais e estrutura do casal.

O pênis ereto é um sinal de poder, posição e ameaça no mundo animal que expressa o comportamento agressivo do macho; à fêmea restam as alternativas da submissão ou da fuga. “O órgão copulatório masculino é uma estrutura subsidiária que se desenvolveu em um tempo sucessivo e só naqueles animais cujo comportamento durante o ato sexual era tal que se adaptava a existência desse órgão. As relações de hierarquia e de força existentes entre os sexos tiveram um papel de primordial importância na determinação da posição assumida pelo macho e pela fêmea durante o acasalamento. O perseguidor mais forte e autoritário afirmava sua própria supremacia montando sobre as costas de seu companheiro… Quanto aos mamíferos, incluindo o homem, não é verdade que a cópula aconteça assim porque possuem um pênis; é exatamente pelo contrário: eles têm um pênis porque o comportamento sexual de seus antepassados — que não o possuíam — preparou o caminho para o seu desenvolvimento.” (Wickler).

O pai é mau, o pênis é mau: esta é uma realidade do mundo patriarcal. Por que a menina deve ser tão cega para considerá-los bons e manter com eles uma relação de confiança? Por acaso não será traída justamente por essa mesma confiança e, quando quiser abrir os olhos, já não será tarde demais?

Felizmente para nós, muitas mulheres viram, já desde pequenas, sua confiança no patriarca desmoronar-se, trocando-a por um desdém apocalíptico ou um atônito estupor. São elas que hoje trazem à luz, pouco a pouco, os conteúdos inconscientes de uma operação cujo grau de risco ainda está em pleno florescimento.

Quando propomos colocar nossa força na mulher clitoriana não queremos fazer uma discriminação de valor entre as mulheres, mas apenas indicar que as premissas da autoconsciência supõem uma alteração comportamental. De fato, a mulher que encontra no feminismo sua saída natural é aquela que, em todo o emaranhado de relações casuais e voluntárias de sua vida, experimentou os momentos inebriantes de sua constituição como indivíduo. O feminismo adquire realidade graças à experiência precedente da mulher; ele de fato existe como uma verdade que vem à tona, e não apenas como lamento. A mulher não identificada com seu papel, por mais extenuantes que possam ser as provas pelas quais ela é constrangida a passar, não é pega desprovida de energias pela tomada de consciência feminista. Percebendo o porquê de cada gesto autêntico seu, percebe também por que não é compreendida e por que não se sente completamente frustrada e mantém sua coragem. Enquanto isso, a mulher vaginal pode viver o feminismo como um fato traumático, em parte por não estar acostumar a pensar de modo independente, e em parte porque, graças a esse pensar independente, toma consciência dos enganos nos quais assumiu um comportamento propenso a confiar no homem e unir-se a ele. Para esta mulher, o feminismo é um ponto de virada em sua vida, não uma continuação, e por isso a autonomia frente ao homem pode se revestir no doloroso aspecto do mais completo desengano; mas a raiva da servidão vivida é uma forma de recuperação tão indispensável para o feminismo quanto a rebelião das mulheres que sempre combateram.

Para a anatomia e para a fisiologia não é nenhum segredo que a parte do corpo feminino mais rica em terminações nervosas é o clitóris, ao passo que a vagina só reage no vestíbulo ou terço externo. A parte restante é uma verdadeira “impossibilidade anatômica” (Kinsey) como sede do orgasmo. Por outro lado, desde o princípio dos tempos, todas as culturas eróticas têm fantasiado sobre a necessidade de técnicas específicas e de um saber amar por parte do homem com o fim de provocar o gozo na mulher durante o coito e fazê-la chegar aos estágios de liberação da tensão sexual. De fato, durante o coito se produz uma massagem rítmica indireta sobre o clitóris — causada pelo alongamento das membranas genitais e também, frequentemente, devido ao contato com o corpo do homem — a qual, unida e multiplicada pela excitação psíquica transmitida ao clitóris e transformada por este, determina a reação orgástica, que, a partir do clitóris, se irradia a todo o aparato sexual da mulher. A nefasta analogia fálica com a qual Freud interpretou o clitóris impediu a identificação do órgão do prazer da mulher com aquele que a menina havia encontrado espontaneamente no autoerotismo. Sem embargo, esta era apenas a circunstância de um erro fatal para gerações de mulheres e o pretexto que o mundo patriarcal necessitava para manter a mulher no velho estado de dependência, justamente quando sua liberação começava a despontar.

O fato do homem querer, contra toda evidência fisiológica, que sejamos vaginais, deveria nos fazer duvidar. Isto porque o homem sempre quis a mulher cativa, não em liberdade. A mulher não pode expressar-se em nenhum setor da vida, e muito menos na reflexão sobre sua sexualidade: não escreveu sua Kama Sutra, nem questionou seu sexo a não ser a reboque de pressupostos já estabelecidos por outros. É possível que não lhe tenha parecido suspeitosa a preocupação encarniçada do homem de mostrar-lhe qual era a verdadeira via da feminilidade?

As afirmações de que o estímulo da fantasia erótica, na mulher, está quase ausente, devem ter em conta o fato de que esta, não expressando sua sexualidade própria, é erotizada pelos conteúdos psíquicos da receptividade. Ela espera as sugestões e estímulos do homem e se adapta a eles. Isto não é repressão: é o trâmite do prazer da mulher obrigada à substituição sexual.

O momento da união, quando ela, o complemento, saboreia o fim da sua incompletude fazendo-se penetrar profundamente pelo macho que goza, se converteu no motor psíquico que mobiliza a voluptuosidade da mulher.

Perguntar-se: por que a vagina é passiva? Ela não pode ser considerada algo que toma, que atua, em vez de algo que acolhe, conforma e se submete? Mas esta é uma interpretação masculina, que sugere à mulher emoções ativas mas, na verdade, é uma variação do seu próprio prazer de possessão, ao imaginar-se absorvido e possuído pela mulher.

Na cultura sexual patriarcal não é o homem que busca a mulher; é o pênis que busca a vagina. A experiência que a mulher valoriza como união, o homem vivencia como um mero episódio de sexo, e depois passa a outro.

“Cada vez que desfrute do Purushayta, a mulher deverá recordar que, se faltar um esforço especial da sua parte, o prazer do marido não será perfeito e, por essa razão, ela deverá esforçar-se para conseguir fechar e apertar a Yoni (vagina), para que esta se molde estreitamente ao Lingam (pênis), dilatando e comprimindo à vontade, de modo similar, em resumo, ao da mão da leitera Gopala quando ordenha a vaca. Isto só pode ser apreendido através de uma longa prática, direcionando-se a vontade para o próprio órgão, como fazem os homens que se exercitam para aguçar o sentido da audição ou do tato. Ao fazer isso…será reconfortante saber que esta arte, uma vez aprendida, jamais será esquecida. E então o marido a apreciará mais que a qualquer outra mulher e não a trocará nem pela mais bela Rani (rainha) do mundo: tão precioso é para o homem a Yoni que o prende! (De Kama Sutra — Arte indiana de amar — de K. Malla)

Apesar da literatura cortesã e amorosa que acompanha a relação heterossexual na cultura, o homem não fica impotente ao saber que a mulher não goza. O pênis manifesta, assim, toda a sua verdade de órgão autoritário que valoriza o lugar onde obtém o prazer porque lhe serve e não porque há reciprocidade.

A mulher, durante o coito, tem a fantasia de ser estuprada: isto é interpretado como fruto da repressão operada pela cultura, que a obriga a aceitar um prazer masoquista e contrário a sua vontade. Em contrapartida, nós opinamos que há algo de verdade naquilo que assoma ao inconsciente da mulher. Se a fantasia do estupro a compraz é porque ela não encontra outra saída a não ser a submissão que conduz ao prazer vaginal.

O homem fantasia estar abusando de uma mulher durante o coito: isto é interpretado como fruto da repressão operada pela cultura, que o obriga a erotizar-se em um impulso irresponsável de violência. Também neste fenômeno entrevemos uma verdade diversa latente no inconsciente masculino: a mulher é verdadeiramente utilizada no ato sexual, e o fato de que ela se recuse e ao fim seja tomada, serve para desenvolver no homem uma imagem agigantada de sua virilidade e, portanto, de seu poder.

Como pode o homem, que se orgulha tanto de sua disponibilidade sexual, encontrar sua melhor condição de equilíbrio projetando-se em uma mulher a quem falta essa disponibilidade mas que toda vez se faz cúmplice dele? E por que ele precisa mostrar-se incomodado com o apego da mulher mas, invés disso, se sente perdido se apenas supõe estar diante de uma parceira que abriu os olhos para a sua condição de objeto e não se adapta mais a esse lugar de esquisitices emotivas — medo, abnegação, admiração — que completam o prazer consumado pelo outro? O homem se sente tranquilo neste ponto porque o sexo que desempenha com tanta desenvoltura não se volta contra ele transformando-o, por sua vez, em objeto.

A mulher que no relacionamento monogâmico passa, através de um esforço consciente e voluntário, da fase clitoriana à vaginal, observa que para ela se tratou de liberar-se psicologicamente de seu enfrentamento com o homem, para gostar de prazeres mais absolutos e em completo acordo. É evidente que aceitar o papel de esposa e mãe, nos quais se realiza prodigalizando-se pelos outros, e reivindicar na relação uma sexualidade própria constitui uma esquizofrenia insustentável.

Comportando-se como uma cópia ruim da mulher vaginal, isto é, como uma mulher vaginal infeliz, escrava e continuamente dissociada de seus impulsos no sentido da autonomia e da desmistificação do homem, ela se sente profundamente culpada. Uma forma de não se sentir culpada é reiterar também no sexo sua adesão à dependência, renunciando ao seu verdadeiro e próprio orgasmo clitoriano, que é tão promissor e exigente como qualquer via para a autonomia. O orgasmo clitoriano efetivamente declina em sua experiência porque já não há nenhuma parte do seu cérebro disposta a conectar-se com ele. A outra solução é a que provém da tomada de consciência feminista, que reforça o direito de uma existência independente dos modelos postos, de modo que a unidade psíquica possa reconstruir-se sobre a base da autoafirmação e não sobre o prazer de perder-se. Este caminho não oferece a garantia de nenhuma norma estabelecida e não pode recompensar-se com a aprovação do homem patriarcal: leva ao imprevisto daqueles dons de imaginação que a mulher assume com confiança em si mesma.

A sociedade patriarcal reproduz os privilégios que as comunidades de mamíferos conferiram à agressividade do macho: é verdade que o harém é uma necessidade do cavalo e de muitos outros animais, mas a necessidade da égua não é a de ser dominada em massa pelo garanhão. Tanto é assim que, em razão da sua desesperada rebelião, para reunir-las e possuí-las o último depende do emprego de violência. Só quando estão sangrando por conta das mordeduras, depois de longos combates, elas aceitam seu papel.

Por masturbação, a cultura masculina entende não apenas o autoerotismo, mas toda a forma de estimulação dos órgãos sexuais que não seja o coito. Esta é uma interpretação que expressa unicamente a supremacia da atividade viril de penetração e das sensações da parte ativa com sede privilegiada na vagina; ainda que se use o termo “coito” para a penetração em outros lugares, como o coito oral ou anal. É por isso que para referida cultura a sexualidade feminina só pode existir mediante atos de masturbação, ainda que sejam realizados pelo parceiro. É evidente o caráter convencional dessas distinções vez que o orgasmo é sempre obtido, invariavelmente, através da fricção rítmica dos órgãos sexuais. Sem embargo, é interessante notar que o coito do homossexual na vagina feminina, ao não estar coordenado a priori com a relação, é considerado uma masturbação per vaginam. Parece evidente que, combinado à ideia de masturbação, existe uma sensação de prazer experimentada em solidão e em separado: como é possível utilizar o mesmo termo para designar os prazeres procurados reciprocamente nas estimulações do encontro amoroso? Em nossa opinião, a diferença entre masturbação e não masturbação está em reconhecer a presença do outro e no erotismo mútuo, e não na execução de um modelo de coito até um habituar-se ao outro, ou ignorar-se reciprocamente, ou perceber-se em reflexo condicionado. Esta é uma imposição do ato privilegiado do patriarca que custodia a virilidade e os valores ideológicos da penetração reprodutora heterossexual.

A preparação dos seres humanos de ambos os sexos é muito diferente tanto na infância quanto na puberdade: enquanto no sexo masculino o exercício do ato em si é estimulado, no sexo feminino, um intenso recatamento é alimentado para superar o ato em si, desencadeando uma catarse do sentimento, no qual o ato parece destinado a anular-se. Nos encontramos diante de dois condicionamentos diferentes para o ato sexual; este antes se encontrava dirigido para o fim do matrimônio ou do casal monogâmico, com a mulher em situação oprimida, mas hoje em dia, quando os jovens buscam um encontro sexual, estes dois condicionamentos, tão diferentes, fazem fracassar a primeira finalidade, sem oferecer em troca nenhuma válvula de escape, tingindo-na de vicissitudes dramáticas que nenhum arranjo posterior pode remediar.

A psicanálise se equivoca ao afirmar que a maturidade do ser humano feminino consiste na disposição a dar-se, abandonado-se ao outro. Pelo contrário, é esta disposição que, contraposta ao caminho descoberto pela menina em seu autoerotismo, a afasta do verdadeiro erotismo e a relega à dimensão do sentimento. Levada a este engano pelo homem, ela então se dedica a sufocar as puras sensações carnais, autônomas e autossuficientes através dos quais podia alcançar altíssimos pontos de prazer.

Desconfiamos do otimismo de algumas mulheres emancipadas que propõem, como exemplo a ser seguido, seu acordo esportivo e sem dramas com o homem. Não só negamos que na atualidade possa existir alguma mulher que tenha relações satisfatórias em algum campo do mundo masculino, como também observamos que, comportando-se segundo o “noblesse obligue” de mulher consciente de todos os privilégios e facilidades masculinas, esta oferece ao homem “compreensão” em troca de uma servidão de outro tipo, mas semelhante ao da esposa tradicional. Sempre foi assim nos períodos históricos mais afortunados e para as categorias sociais de êxito e representatividade. A mulher assim emancipada dá ao homem a comodidade de regular sua emotividade de acordo com a dele, subordinando sua exigência a dele, acomodando sua versão dos fatos à versão dele, e, assim, mata sua autenticidade com a ilusão de não ser derrotada.

Autonomia para a mulher não significa isolar-se do homem, como temem as mulheres vaginais acostumadas a encontrar a plenitude no parceiro. Autonomia significa disponibilizar para si aquela potência que durante milênios cedeu a seu amo.

A mulher que passou, de forma mais ou menos penosa, da experiência clitoriana à vaginal, é a mulher que geralmente rechaça a autonomia frente ao homem como um valor. Parece que tem a solução do problema ao seu alcance, porque, no plano do prazer, possui um termo de comparação[5] com o homem, entre uma máxima e mínima cumplicidade psíquica, e, portanto, física. A cumplicidade mínima é vivida como separação e concorda, em substância, com as interpretações freudianas que consideram madura a mulher capaz de abandonar-se ao outro sem reservas. Esta máxima ou mínima cumplicidade com o homem é sinônimo de uma maior ou menor realização dela mesma com o homem e, portanto, de maior ou menor prazer. O peso dessas mulheres, que constituem a verdadeira defesa da cultura sexual patriarcal e a peça de apoio para que esta seja imposta à grande maioria de mulheres sobre o pretenso amparo de uma superioridade objetiva e experimental de sensações, é, ainda que elas não saibam, muito grande. A ingenuidade de oferecer um testemunho da grande volúpia com a qual oferta um orgasmo simultâneo ao do homem, e no momento escolhido por ele, se deve ao fato de que estão predispostas a pensar que o erotismo máximo é o alcance desta condição. A mulher vaginal tende a ficar longe do verdadeiro erotismo, que não é a fusão com o outro, ou a perda da consciência ligada a emoções psíquicas que, por sua vez, estão condicionadas ao sonho adolescente de apaixonar-se, mas é jogo e exaltação nos quais as possibilidades de expansão de si emanam diretamente das respostas mútuas do corpo dela e dele. O erotismo puro, quando provém de um estado de consciência, libera no ser humano a capacidade de converter-se em indivíduo. No entanto, para a mulher entregue às sensações e ao êxtase da simultaneidade, desaparece o polo carnal que, juntamente ao ético, lhe daria a sensação de inteireza, levando à liberação da criatividade.

Para a mulher, o prazer vaginal não é mais profundo, mais completo; é, simplesmente, o prazer oficial da cultura patriarcal. Quando a mulher o alcança, sente-se realizada no único modelo gratificante a seu alcance: aquele que satisfaz as expectativas do homem.

“Como é compreensível, a máxima intensidade fisiológica da resposta orgástica da mulher, sentida subjetiva ou objetivamente, foi registrada pela amostra experimental mediante técnicas de automanipulação ou por meios mecânicos regulados pelo próprio sujeito. Imediatamente depois aparecem os níveis de intensidade erótica obtidos pela manipulação efetuada pelo parceiro. O nível mínimo de intensidade na resposta dos órgãos interessados foi registrado durante o coito.” (W.H. Masters y Virginia E. Johnson)

O homem não sabe mais quem é a mulher quando esta deixa sua colonização e os papéis através dos quais ele preparava uma experiência pronta e repetida por milênios: a mãe, a virgem, a esposa, a amante, a filha, a irmã, a cunhada, a amiga e a prostituta. A mulher era um produto confeccionado de modo que ele não tivesse nada para descobrir em tal ser humano.

Cada papel oferecia suas garantias a ele; sair dessas garantias era perder a consideração do homem, era o fim. Hoje, toda mulher “diferente” sabe que todo homem, em seu coração, decreta-lhe o fim porque, não conseguindo catalogá-la, ele se sente irritado e impotente diante do fato de que o entendimento entre ambos os sexos já não é tão claro quanto antes.

Ajudado nisso pela psicanálise, que reflete a hostilidade masculina em admitir que a mulher seja um problema para ele, ele rotula a toda mulher não identificada com seu papel colocando em dúvida sua saúde psicossexual.

“Entre as centenas de pacientes que observei e tratei ao longo de alguns anos”, afirma W. Reich referindo-se a experiências realizadas por volta de 1920–1925, “não havia uma só mulher que não sofresse de completa ausência de orgasmo vaginal. Para os homens, cerca de 60 a 70% apresentavam perturbações genitais graves”. Os outros, esses 30 ou 40% que não apresentavam doenças evidentes como impotência ou ejaculação precoce, ao descrever suas sensações e seu comportamento durante o ato sexual, convenceram Reich de que eles também sofriam de graves distúrbios genitais. Reich ainda insiste na crença de que é impossível encontrar pacientes do sexo feminino sexualmente saudáveis: “A mulher era considerada genitalmente sã quando atingia um orgasmo clitoriano. A distinção entre excitação clitoriana e vaginal era desconhecida. Em suma, ninguém tinha a menor ideia da função natural do orgasmo”.

Partindo do pressuposto do coito normal como entrega, ternura e desejos recíprocos como meta confluente de duas personalidades neuróticas: a do homem — substancialmente estuprador, sádico, exibicionista, ainda quando está capacitado para completar regularmente o ato sexual — e a mulher — incapaz de orgasmo vaginal e cujas atitudes frente ao companheiro refletem angústia, frigidez, masculinidade — Reich reforça a ideologia freudiana do orgasmo vaginal.

Ora, não vemos como é possível sustentar que uma mulher capaz de ter um orgasmo clitoriano, mas não o vaginal, é uma mulher incapaz de potência orgástica e de que forma é comparável, por exemplo, ao homem que se declara privado de sensações prazerosas durante a ejaculação. Talvez fossem semelhantes se a mulher também afirmasse não obter do seu orgasmo clitoriano nenhum ápice sensorial o descarga da tensão sexual. Mas isso só se verifica quando a mulher toma conhecimento da valorização negativa e transitória que a cultura sexual masculina atribui ao orgasmo clitoriano, através da reação do parceiro e da prova que atesta sua feminilidade na passagem a um orgasmo vaginal considerado superior e definitivo. Essa experiência ótima de orgasmo simultâneo na penetração, a única saudável, na qual ambos os participantes se entregam reciprocamente, sem reservas, uma vez destruídas as couraças sexofóbicas derivadas da represssão, é uma hipótese absoluta, que prolonga o modelo sexual responsável pela angústia feminina. A união entre os sexos, no nível do prazer, numa realidade em que os sexos são inimigos, não por um trágico mal entendido criado pela repressão, mas pela gestão milenar do mundo por parte do homem e pelo exercício milenar do poder masculino, sempre foi uma operação fracassada em direção à qual a mulher foi empurrada. Hoje em dia, a mulher quer o orgasmo não por questões do casal, mas por sua saúde fisiológica e mental, porque considera espantoso que durante milênios seu parceiro a tenha levado à excitação sem lhe promover um orgasmo, sendo a possibilidade de retribuição remetida ao azar, ou a uma disposição dela frente a ele. Mas é ainda mais espantosa a alternativa de recusar a excitação já que não está no poder da mulher garantir-se uma saída por si mesma. Invés disso, o que permite à mulher reagir no sexo e participar ativamente na excitação é a certeza do orgasmo, do conhecimento e da conduta exata para obtê-lo. A passividade da mulher é o remédio de quem não colabora em um processo cujo resultado não controla; e este é o estado de frustração que a converte em instrumento do outro. À mulher resta o âmbito do prazer experimentado nos limites da angústia. A cosmovisão de Reich também era tipicamente masculina; a partir de dados relativos à crueldade e ao sofrimento no sexo, certamente aterradores, ele chega a soluções totais ilusórias em que o patriarcado é preservado. De fato, dados desse tipo deveriam convencer a humanidade masculina à abandonar a ditadura do gênero humano: todos os salvadores do mundo são patriarcas, mas o mundo não pode ser salvo desse modo. Está claro que não há salvação dentro do patriarcado.

“A mulher é um copo de prata em que o homem deposita seu fruto de ouro” (Goethe).

O patriarcado confere certo brilho de prestígio cultural a todos aqueles que pertencem ao sexo masculino. Ainda que em situação de mediocridade individual, os homens usufruem de um excedente de prestígio que fascina à mulher em quaisquer de suas relações com eles, seja amorosa ou de trabalho. Essa impostura coloca a mulher à mercê do homem, estabilizando uma situação de desequilíbrio que nenhuma mulher pode superar por si mesma no transcurso de sua vida. O feminismo a dissuade de levar a sério a mania do homem que se sente obrigado a deixar uma marca permanente de si mesmo, ainda que esta marca não justifique nem o esforço, nem — e isto é mais grave — o mito que a mulher tem da ação cultural do outro, cuja absoluta superfluidade não consegue vislumbrar.

Em Reich, falta a consciência da crise real entre o sexo colonizante e o sexo colonizado: se se ocupa da mulher, só o faz porque não pode negligenciar o complemento do homem. Mas é este último o trágico protagonista dos anos do fascismo, do nazismo, do stalinismo, do macarthismo, que obceca Reich com a sensação de total perversão dos instintos. E é para ele que Reich profetiza um banho regenerador na energia original do cosmos. Mas a humanidade feminina deve exorcizar o poder que o macho exerceu no curso de toda a evolução da espécie, para redimi-la da condenação destinada a ela: um desequilíbrio de forças e de funções. A mulher se pergunta se é verdade que as fêmeas dos animais inferiores e superiores, inclusive dos primatas dos quais presumivelmente descendemos, estão privadas da descarga vital do orgasmo, e olha com ceticismo a natureza que os homens apresentam como testemunho. Testemunho de quê? Atingir o orgasmo durante a penetração foi, sem dúvida, para a mulher, produto da inteligência, a inteligência do ser subjugado que estabelece com o ser superior essa ligação psíquica que escapa ao animal fêmea. Mas a inteligência que permitiu à mulher ajustar-se emocionalmente ao prazer do sexo hegemônico é a que, desde o início dos tempos, a manteve submetida à vontade do outro. A única inteligência da mulher que o feminismo reconhece é a que a tira do cativeiro do macho, manifestada na rejeição das teorias que indicam a excitação e o orgasmo obtidos durante o coito como expressão da sexualidade feminina.

Consciente de um orgasmo obtido por sugestão da união física dos corpos dos quais um, o que pertence à raça superior, está em condições de gozar automaticamente, a mulher reivindica uma sexualidade própria, cuja resolução orgástica não esteja ligada a nenhuma condição mental de escravidão.

A mulher começa a pensar em primeira pessoa, e não escuta outras demandas que não sejam as de sua libertação frente ao outro sexo, desconfia de tudo, tanto da natureza quanto do cosmos. Não quer enfatizar o que diz respeito ao sexo, ao casamento e ao prazer. Finalmente, de posse de sua sexualidade, ninguém deverá convencê-la de que seu esforço será bem recompensado e que o prazer de um instante vale uma vida de escrava. Muito além das teorias acerca de sobreposições cósmicas e acerca de compenetração de dois sistemas orgonóticos, a mulher, não estando submetida ao modelo sexual e ao mito do homem, pode confirmar facilmente que seu orgasmo clitoriano e o orgasmo masculino obtidos na reciprocidade erótica, são o mesmo fenômeno. Por mais que insistam nos valores biológico-emocionais da relação do casal e sobre o abandonar-se ao outro, compreendemos que é fundamental abandonar-se apenas ao fenômeno.

Para atingir o orgasmo durante o coito, a mulher deve ter uma ideia do homem que transcende a ideia que ela tem de si mesma, e convencer-se de estar com alguém à altura da ideia elevada que tem do homem.

Há um momento da vida da jovem que passa como um meteoro. É quando se desprende da casa paterna e, sozinha, percebe confusamente todas as potencialidades do seu ser. Podemos nos perguntar: como é possível que esse período de autonomia seja tão breve? Por que a aproximação do rapaz se torna uma capitulação tão imediata? A espera do encontro com o homem, base de sua preparação para a vida, criou nela uma disposição que se desencadeia antes mesmo que possa tomar consciência do que realmente está acontecendo: nada do que era seu, nem sequer o prazer sentido no auto-erotismo, se conserva em pé ante o transtorno que provoca o contato com o mundo masculino. A ignorância, a indiferença, a tolerância ou a hostilidade do homem em relação ao prazer sexual específico da mulher e às maneiras de alcançá-lo, são determinantes para sua reação ao prazer. Sob a égide da juventude, quando o rapaz está absorvido pelo exercício exuberante de sua sexualidade, a jovem, no entanto, sofre uma mudança brusca de rumo que a desorienta e desilude. Perde a autoconfiança que havia irrompido por um momento em sua psique ao serem afrouxadas as pressões externas, e sinaliza uma espécie de queda da personalidade que a confirma no apego ao homem. Seu estado de ansiedade em razão de sua fragilidade se estabiliza nesse ínterim, e é sobre este estado de ansiedade que o homem trabalha. Como disse um antigo escritor indiano: “Todas as jovens escutam o que os homens lhes dizem, mas às vezes eles não respondem nem com uma palavra sequer.

Não esqueçamos que o momento em que a mulher toca o fundo do sofrimento vital, na cultura masculina, é aquele em que ela, inconscientemente, se habitua à falta de prazer, impondo-se um parceiro para satisfazer necessidades ligadas à mistificação do homem, à presença dele em sua própria vida, mas não ligadas ao erotismo.

Tradicionalmente, as mulheres buscam autoafirmação na cultura e na ainda mais cobiçada criatividade masculina. Enquanto perde terreno na adolescência e na juventude, a jovem, exaltando-se ou retirando-se para dentro de si, às vezes encontra espontaneamente uma saída na expressividade e trata de viabilizar um destino criativo. Hoje o feminismo adverte às mulheres sobre este ponto e as convida a refletir sobre o seguinte: a primeira condição através da qual decola a noção da existência feminina é reconhecer na colonização sexual a condição básica do enfraquecimento e da sujeição da mulher. É daí que toda mulher deve partir para libertar-se. Se pretende expressar-se no mundo masculino deve saber que, definitivamente, está desenvolvendo uma energia criativa para medir-se com os homens isoladamente, para ser admitida por eles. O feminismo considera que essa atividade, anterior à autoconsciência das mulheres, é respeitável apenas se com ela a mulher conseguir se libertar da homenagem cultural ao homem.

A mulher vaginal é aquela que sustenta o mito do grande pênis prepotente e custodia a ideologia da virilidade patriarcal. É uma projeção do orgulho do macho e se converte no íncubo do seu declínio biológico. Mas se é verdade, como foi demonstrado por Master e Johnson, que a fenomenologia orgástica acontece na mulher graças ao clitoris e é idêntica à masculina, com participação de todos os órgãos genitais, através de qualquer estímulo do clitóris, seja direto ou indireto, somático ou psíquico; e se é verdade que na estimulação direta, própria ou da parceria, a fenomenologia orgástica é mais intensa, rápida e segura de alcançar, como então, esses mesmos investigadores, depois de descobrir esses dados, continuam falando da vagina como “órgão primário da expressão sexual feminina”, invés do clitoris, que é “o ponto focal da reação sexual feminina”? Quais são as razões para manter esse dualismo? E como é possível que passe despercebido o fato de que na reação sexual feminina “se encontra invariavelmente um componente psíquico resultante do estímulo do clitóris”? E porque se assustam que o problema do orgasmo tenha sido um problema feminino, enquanto no homem o orgasmo é dado por garantido, surgindo em seu lugar o problema da ereção? Obviamente, não existe resposta dentro da abordagem em que se afirma, apesar de tudo, que “a função do pênis é prover um meio orgânico aos fenômenos fisiológicos e psicológicos do aumento e da sucessiva resolução das tensões sexuais masculinas e femininas”. É, portanto, nessa passagem dogmática onde se oculta o núcleo da falsificação que levou e sujeitou o sexo feminino à hipoteticidade do orgasmo e ao sexo masculino à voluntariedade da ereção.

O homem subjugou a mulher fazendo dela o instrumento voluptuoso de sua sexualidade, mas desse modo, ele sente que vai perdendo poder pouco a pouco à medida que perde virilidade: e aqui se desencadeia o mecanismo que confronta antagonicamente os homens mais jovens e que os faz segregar e dominar as mulheres. A cultura fálica patriarcal é um reflexo da obsessão masculina que levou à identificação pênis-poder. A mulher clitoriana, ao afirmar sua sexualidade própria, cujo funcionamento não coincide com a estimulação do pênis, abandona o pênis a si mesmo. Tudo o que concerne ao pênis já não coincide mais com a expressão de dominação, da qual o homem extrai seus estímulos exibicionistas e sua atitude sádica, mas com a pura e simples manifestação do prazer. A mulher não necessita nem de ereção, nem de potência, nem de força, nem de nada. O pênis é o sexo próprio do homem e o é para ele. Precisa redescobrir-se nesta nova dimensão da consciência: a ilusão de poder que o fazia ver-se refletido no êxtase feminino e criava para ela uma obrigação é um engano de sua própria dominação. A mulher tem um ponto privilegiado e precioso, perfeito e infalível, de onde partem todos os êxtases que um ser humano pode sentir, e não está diretamente relacionado ao pênis. Se o homem extrai dessa autoconsciência feminista maus pressentimentos e se sente ameaçado, isso significa que ele não vê lugar para si no mundo a não ser impondo os mitos da masculinidade e da subjugação da mulher.

A fêmea do babuíno, ou de um macho inferior, ao performar o ato de submissão, vira-se de costas para o macho mais forte. Isso sanciona a nova relação de dependência com o ritual de uma cópula fingida.

Ainda que, por ideologia, o homem possa ser pacifista, igualitário, antimilitarista, antiautoritário e pró feminista, a mulher que o conhece durante a relação sexual, sabe que ele se sente investido de sua virilidade como de uma força da natureza, e que seu protesto cultural se dilui frente ao papel agressivo, chauvinista, violento, autoritário e antifeminista do seu pênis patriarcal.

No encontro amoroso, a mulher não deve esperar do homem desajeitadas iniciativas sobre o clitóris, mas sim mostrar ela mesma qual é a carícia rítmica preferida que, sem interrupção, a leva ao ponto do gozo. A relação com uma mulher que quer o prazer clitoriano como sexualidade própria não pressupõe uma técnica e gestos eróticos inusitados, mas sim uma relação diferente, entre sujeitos que descobrem suas fontes de prazer e os gestos convenientes a elas. O homem deve saber que a vagina é, para a mulher, uma zona moderadamente erógena e apta para os jogos sexuais, mas é o clitóris o órgão central da sua excitação e do seu orgasmo.

O sexo é uma função biológica essencial do ser humano e tem dois momentos: um pessoal e privado, que é o autoerotismo, e outro relacional, que é a troca erótica em parceria. A proibição do autoerotismo atinge a mulher duramente não apenas porque a perturba ou a impede de se realizar neste assunto, mas porque a lança, inexperiente ou autoculpabilizada, ao mito do orgasmo vaginal, que para ela se converte no “sexo”.

“Acorde! Levante-se, meu falcão branco!”. Atravessei a pé a terra toda para chegar a ti; gastei três pares de sapato de ferro, quebrei três bastões de aço, comi um quilo de pão duro. Acorde e levante-se, meu falcão branco: tenha pena de mim!” (Fábula popular russa)

A mulher clitoriana não é a mulher liberada, nem a mulher que não foi vítima do mito masculino — porque tais mulheres não existem na civilização em que vivemos — mas é aquela que tem confrontado a todo momento a invasão desse mito e não se tornou uma presa dele. Sua ação não é ideológica, mas vivida boa parte de sua vida através de todo tipo de desvios frente à norma, desvios que, na cultura masculina, eram interpretadas como manifestação óbvia das veleidades do ser inferior. Mas tem sido justamente através delas que a mulher pode começar a experimentar uma iniciativa sua própria resistindo às pressões da colonização que lhe reclamavam insistentemente o cumprimento do seu papel com a promessa de ser recompensada e aceita pelo homem. A mulher clitoriana, com raiva, impotência e determinação total de salvar-se ao menos a si mesma, registrou o momento em que as próprias companheiras eram devoradas pelo mundo masculino e desapareciam sem deixar rastro algum, e ao não poder explicar a si mesma todas aquelas vidas perdidas, o fatalismo com que terminavam aceitando que o outro inspirasse seus pensamentos e gestos, intuiu uma maquinação histórica contra seu sexo. A mulher clitoriana é uma mulher que resistiu, firmando-se sobre sua autoconsciência, reprimindo em si mesma toda uma parte de sua feminilidade, até que descobriu que era a parte da feminilidade que o homem lhe havia imposto e alimentado; mas ela não agiu assim porque pensava que a liberação estava garantida. Ela baseou-se tão apenas em sua autenticidade, que não garante resultados antecipados.

Entre os textos clássicos sobre o coito patriarcal se encontram o das técnicas amorosas indianas, a partir do Kama Sutra. No mundo atual, referidos textos têm sido retomados por homens ávidos de “recordes” de virilidade e prodigalidade amorosa, e por mulheres que acreditam no que os homens dizem sobre sexo e, mais ainda, aspiram a adequar-se aos modelos mais excepcionais propostos por eles. Mas o que a mulher percebe é que o prazer vaginal deve ser obtido simultaneamente, e a simultaneidade é determinada pela adaptação da mulher. De fato, no coito, o homem se encontra implicado em sua cadeia de reações fisiológicas a qual a mulher deve habituar-se a sentir como estimulantes até chegar ao seu próprio orgasmo. É evidente que quanto mais a mulher tenha experimentado o autoerotismo e o “heavy petting” (masturbação acalorada entre duas pessoas) mais difícil psicologicamente será acomodar-se a essa necessidade. E também é evidente que não se trata de uma simples e pura adaptação sexual que pode ser acionada, mas de toda uma atitude da mulher que dá ao homem a prioridade na vida e no mundo. Portanto, não se pode ignorar que a completa sujeição da mulher foi a condição que permitiu que os momentos dourados do erotismo do casal florescessem no mundo patriarcal. É a continuidade desta feminilidade que Freud e Reich gostariam de garantir no presente.

Que o homem é Logos e a mulher é Eros significa que o homem é pênis e a mulher, vagina. O homem se satisfaz no encontro com um objeto, a mulher se satisfaz exaltando-se em um sujeito.

O fato de que, na cultura patriarcal, a mulher seja objetificada demonstra o quão diferente é o destino do homem adulto em relação ao da mulher adulta. Um exerce uma atração de personalidade que lhe confere uma aura de significado erótico, ainda que em sua fase de decadência física; a outra percebe brutalmente que, quando sua juventude desaparece, desperta, no máximo, uma tolerância que evita ou retarda seu apagamento erótico. O homem tira proveito do mito, a mulher não tem recursos pessoais suficientes para criá-lo. Aquelas que tentaram sozinhas sofreram um estresse que abreviaram suas vidas.

Reich não apenas reafirmou de maneira absolutamente definitiva o modelo sexual penetrativo, mas percebendo que esse modelo era realizado em um estado de inimizade entre os sexos, postulou neste orgasmo — considerado como o verdadeiro — a prova de uma nova aliança. Mas o orgasmo, ao contrário do que Reich acreditava, não é um problema idêntico para homens e mulheres na cultura patriarcal: durante o coito um o obtém automaticamente, a outra o obtém mediatamente. Se a mediação psíquica não funcionar, a mulher não consegue obtê-lo. Ao invés disso, ela o obterá automaticamente[6] através do estímulo direto do clitóris. A impotência e a ejaculação precoce não estão ligadas à dificuldade de resolução orgástica, mas à dificuldade de ereção. Todas essas condições, portanto, têm a ver com o modelo sexual penetrativo, que é um modelo cultural de virilidade e feminilidade, e não com o orgasmo. Reich, portanto, sustentou um homem viril e patriarcal e imaginou que poderia exorcizar sua componente sádica, desde sempre inseparável e derivada da tradição de domínio, ao passo que ao afirmar que o orgasmo vaginal é a função completa da mulher, repetiu e agravou o preconceito freudiano sobre o clitóris e apresentou uma resposta patriarcal à angústia da mulher durante a penetração. O homem permaneceu com o orgasmo que tinha, a mulher ficou com a alternativa de ter que escolher entre um orgasmo que a ratifica como complementária do homem, ou um orgasmo superficial, infantil e masculino, ou então a privação do orgasmo. A ideologia da repressão criou, através de um falso diagnóstico, uma falsa expectativa para a humanidade. Pensava-se que havia um passado de espontaneidade para se recuperar — esse movimento para trás é típico do modo de avanço da cultura patriarcal — porque era inconcebível que pudesse haver algo de “novo”. Mas a mulher, que provém da opressão que historicamente durou milênios, não tem nenhum paraíso perdido atrás de si, e observando todos os estágios da passagem da animalidade à humanidade, os vê dominados pelo macho, isto é, pela penetração. Está oprimida pelo modelo sexual, não está reprimida porque não responde ao modelo sexual. Então é uma forma sua de inteligência, ligada ao modo subjetivo de querer e entender o prazer, o que a leva, justamente ela, a reprimida, a sair do estágio animal — reprodutor — para passar ao estágio do prazer por si mesmo.

A confusão provocada por Reich surge do fato de que nele coexistem, por um lado, uma consciência nova da função do prazer e do orgasmo — ao ponto de ele chegar a teorizar que o primum da substância plasmática é a concentração e a expansão, carga e descarga, e que a reprodução só representa uma acidentalidade subsequente — e, por outro lado, uma visão regida absolutamente por uma sexualidade reprodutora com o rechaço patriarcal do clitóris. Na cosmogonia reichiana não há lugar para o único órgão cuja função é pura e exclusivamente proporcionar prazer.

A mulher clitoriana não tem nada de essencial para oferecer ao homem e não espera nada de essencial dele. Não sofre pela dualidade e não quer se tornar um [com o parceiro]. Não aspira ao matriarcado que é uma época mítica de mulheres vaginais glorificadas. A mulher não é a Grande-Mãe, a vagina do mundo, mas sim o pequeno clitóris que a leva a sua liberação. Pede carícias, não heroísmos; quer dar carícias, não absolvição e adoração. A mulher é um ser humano sexuado. Fora do vínculo insubstituível começa a vida entre os sexos. Já não se trata de heterossexualidade a qualquer preço, mas de heterossexualidade se não tiver preço. Todos os ingredientes estão misturados e a mulher os assume no que diz respeito à constituição da sua pessoa e não porque lhes sejam destinados pelo patriarca como pertencentes ao sexo feminino.

Na escola, ensina-se aos jovens o funcionamento da procriação, não o prazer sexual. Sempre soubemos disso, mas hoje nos damos conta de que se ensina às meninas o modelo da submissão, e aos meninos ensinam-se o conhecimento do seu sexo e a ignorância do sexo feminino. O que significa para a menina que descobriu o clitóris, e ainda mais para aquela que não o descobriu, que lhe seja ensinado que seu sexo é a vagina? É necessário respeitar as etapas do conhecimento subjetivo do prazer das meninas, das adolescentes, partindo da experiência autoerótica; esta é a educação sexual que neste momento possui um nexo com suas sensações e emoções. O resto é imposição de uma sexofobia reformada, paternalista e desencorajadora para a expansão da menina.

Um momento que precisa ser salvaguardado na emotividade da adolescente é o da ternura com às pertencentes ao próprio sexo. Esta fase de perturbação na sexualidade feminina é importantíssima, seja porque deixa uma sensibilidade mais aguda e solidária para com as mulheres, seja porque deposita no fundo da consciência uma hipótese de possibilidade não realizada, mas não irrealizável. Nós queremos afirmar o amor clitoriano como modelo de sexualidade feminina na relação heterossexual, pois não basta para nós ter o clitóris como ponto de referência consciente durante o coito, nem queremos que a oficialidade do clitóris seja exclusiva da relação lésbica. No entanto, estamos convencidas de que, enquanto a heterossexualidade for um dogma, a mulher continuará sendo, de algum modo, o complemento do homem; por outro lado, ela pode trazer desde a adolescência, em sua bagagem de intuições, um impulso para com as mulheres a partir do qual lhe seja possível voltar a medir, sempre que necessário, o desenvolvimento das relações heterossexuais.

A mulher é monogâmica, o homem poligâmico; a mulher é receptiva, o homem agressivo; a mulher é passiva, o homem ativo; a mulher é para a família, o homem para a sociedade; a mulher é executiva, o homem criativo; a mulher é presa, o homem caçador; a mulher é irresponsável, o homem responsável; a mulher é imanência, o homem transcendência. A mulher é vagina, o homem pênis.

Do ponto de vista amoroso, o homem quer guiar profundamente a mulher para que ela se perca de si mesma. Quer enfraquecer sua resistência, sua iniciativa, sua autonomia. Ele quer investigar o quão profunda é a dedicação dela e quer assegurar-se de que é capaz de aprofundar nela o esquecimento de si própria. O homem sabe que isso lhe pertence por direito e o exige; sente-se inseguro se não é bem sucedido, não porque necessite da reciprocidade, mas porque assim exige sua auto-estima como homem. Pode ser que chegue a rechaçar conscientemente a entrega da mulher e requerer um tipo de mulher emancipada para estar apenas ao nível sexual. Mas não descuida do olhar alerta sobre os papeis recíprocos porque, apesar de tudo, ele necessita de uma mulher cujo erotismo se desenvolve como reflexo condicionado da recompensa vaginal. Assim, a liberdade sexual do homem exige um conflito ulterior na mulher que é obrigada a responder ao modelo sexual tradicional e envergonhar-se das emoções associadas ao funcionamento desse modelo, segundo a pretensão explícita do sexo dominante, cuja prepotência aumenta com o aumento de suas liberdades.

Nós retomamos o feminismo ali de onde Lenín o deixou, marcando-o e reprimindo-o até transformá-lo em uma organização de mulheres comunistas, privadas de autoconsciência. Sabemos que as feministas burguesas encontraram nas mulheres proletárias uma correspondência imediata e entusiástica sobre os problemas do sexo, e que, justamente aí, foram interrompidas com o anátema e a chantagem. Não eram esses os problemas da ordem do dia e não seriam nunca mais: Lenin prometia liberdade, mas não queria admitir o processo de liberdade que, para as feministas, partia do sexo. A liberdade prometida era, portanto, uma nova prevaricação. A revolução sobre bases ideológicas reforça o poder patriarcal, pois, ao rechaçar o valor do processo de libertação das mulheres através de sua autoconsciência, elimina a expressão criativa da coletividade feminina e a incita paternalmente à vicariedade e à obediência como primeiro passo no qual seu senso de responsabilidade é medido. O feminismo orientou-se espontaneamente com base na tomada de consciência, o que não se confunde com a adesão passiva a uma doutrinação: de fato, não está prometendo liberdade às mulheres, mas são as mulheres que prosseguem, dia a dia, seu processo de libertação. Por outro lado, o homem continua propagando sua virilidade patriarcal na ideologia, na autocrítica, no experimentalismo, que conduzem a humanidade a todo tipo de laceração e alienação de si mesma.

Uma mulher pode se perguntar: o que falta na teoria socialista que o feminismo poderia contribuir? Respondemos: por exemplo isto: que a subordinação das mulheres está consagrada no ato sexual penetrativo, de onde o homem extrai a convicção natural de sua supremacia. Esta é a premissa da família patriarcal autoritária, opressiva e antissocial, por conseguinte, acumuladora de bens e prestígios; é a base da humanidade que deve transformar-se mediante a autoconsciência para encontrar criativamente novos modos de associação correspondentes a sua libertação. Este é o passo histórico fundamental que o feminismo enfrenta no trabalho com os grupos de autoconsciência, em que a mulher fala autenticamente de si mesma, de suas experiências desacreditadas, que nunca encontraram audiência em nenhum canto da cultura masculina, descobrindo cada dia mais o abismo milenar em que a opressão da mulher se afunda e se perde, e descobrindo, pouco a pouco, a estrutura opressiva do patriarcado em toda a complexidade de sua trama, a qual não pode ser desemaranhada a não ser com a contribuição de cada mulher.

Nos macacos do mundo antigo, a relação inferior-superior é claramente representada em termos de fêmea-macho no gesto de saudação entre os componentes do grupo: consiste em oferecer a cópula como sinal direcionado a acalmar a agressividade, independentemente do sexo do ofertante. Ao apresentar o traseiro com a cauda para cima ou para o lado, a fêmea ou o macho subordinado oferece ao superior mais satisfação social do que uma oportunidade de cópula; este gesto distensivo de submissão às relações de força e hierarquia garante a eles a sobrevivência na vida gregária. Em alguns mamíferos, como o chimpanzé, quando um macho é acometido por um ataque de raiva, monta em um de seus semelhantes, macho ou fêmea, o que estiver mais próximo, e se acalma executando uma cópula real ou fingida. Imitar a fêmea, em tais ocasiões, se converte no meio mais seguro que a natureza concede aos jovens de algumas espécies de macacos para neutralizar as ameaças dos chefes adultos, ao menos até que eles sejam capazes de disputar o posto: seus genitais apresentam a mesma coloração e inchaço que os genitais da fêmea durante o cio, e em tais condições repetem os gestos de oferecimento. Nesse sentido, podemos interpretar as relações jovens-adultos e servo-senhor como uma institucionalização no mundo da relação inferior-superior que tem sua condição “natural” e permanente na relação mulher-homem. Ao se rebelar, tanto o jovem quanto o servo reivindicam sua virilidade, em consequência, seu pênis patriarcal; e levantam a questão da tomada de poder. Ao se rebelar, a mulher revela o arquétipo da dominação que é a penetração como primeiro ato de violência e desigualdade hierárquica entre os seres.

A mulher vaginal que toma consciência através do feminismo rompe a integração com o homem e revela a crise daquela que ficou presa no “impasse” patriarcal: por um lado, se submete ao mito masculino até aceitar todos os seus arbítrios, por outro lado, é isso o que a erotiza e não qualquer outra relação com o homem. A situação de casal com a submssão do sexo feminino, situação que a mulher clitoriana evita e que suscita toda a sua indignação, torna-se compreensível no momento em que a mulher se rebela e abandona a união com o opressor. Aqui é onde podemos aproximar dois tipos de mulheres afastadas umas das outras por sua atitude em relação a si mesmas e em relação ao parceiro, porque ambas se reconhecem dentro do sistema patriarcal: uma com uma vida deteriorada pela submissão aos vínculos tradicionais, a outra com uma vida, antes do feminismo, relegada a uma condição de resistência interior. A mulher clitoriana se dá conta de por que os psicanalistas a definiram como infantil e masculinizada e consideraram sua obstinação em manter-se em seu próprio sexo detestável. Ao não se dispor a erotizar-se com os temas da possessão amorosa e da fusão com o outro, falta-lhe aquela experiência trágica da “entrega” total, que leva a mulher vaginal a um tipo de humanidade na qual o homem sempre reconheceu sua companheira: a mulher que, com seus sofrimentos, contrasta implicitamente com a história de sua supremacia e, considerando que não a impede, culmina por validá-la e enriquecê-la de “pathos”. Ao manifestar a tendência de dar a si mesma a precedência, e não ao homem, a mulher clioriana é vista como quem reproduz um comportamento típico da masculinidade, sendo que o que faz é, simplesmente, abandonar a condição emocional de quem é capaz de aceitar, agradecidamente, um status de insignificância. O infantilismo da mulher clitoriana é, na verdade, sua intuição da possibilidade de uma vida feminina diferente, com um frescor que não murcha, como o de Natasha [Rostova?], ao entrar em contato com o homem patriarcal que a domina e apaga na resignação apática da meia-idade, mas, ao contrário, tem esse frescor lentamente disperso no fluir de uma vida não necessariamente predeterminada [non scontata][7].

Ao entrar no mecanismo vaginal, a mulher logo toca o fundo de sua colonização porque se torna incapaz de reagir de outra maneira que não seja sendo possuída: é assim que, debatendo-se para se reencontrar de algum modo, ela participa da dialética repressiva e se torna uma guardiã involuntária dos valores chantagistas masculinos. É com esta certeza que o patriarca lhe confia a custódia e a educação dos filhos, pois compreendeu que para ela não há outra possibilidade.

A mulher vaginal que sai do seu papel pode fazê-lo com a sensação de que está derrubando todas as relações possíveis; a mulher clitoriana, ao contrário, que não se sentia culpada diante do homem reivindicando continuamente suas próprias exigências como indivíduo, se dá conta de que que seu choque traumático com o patriarcado ocorreu em um momento anterior ao surgimento dos primeiros indícios de sua tomada de consciência, seja como reação, seja como desenvolvimento de potencialidades imprevistas. Em um mundo em que o prazer clitoriano é mal visto pelos homens e pela maioria das mulheres vaginais, a mulher que o fez o centro de seu erotismo se sente uma incógnita, diferente no plano humano e no cultural. É uma conquista de si mesma e de sua própria feminilidade que não se concentra no âmbito complementar ao âmbito do homem, mas se expande para fora da heterossexualidade patriarcal.

O que é chamado de humano nesta cultura reflete o grau de participação positiva da pessoa nas vicissitudes patriarcais. A mulher clitoriana, que se distanciou desta participação, tem que enfrentar continuamente um vazio de humanidade, pois o entrelaçamento das relações psicossociais entre os sexos em que ela vive lhe é estranho, e não existe outra dimensão cultural ou social em que lhe seja possível reconhecer-se. Permanecer muito tempo nestas condições de não realização, isto é, de perda da personalidade patriarcal, sem recorrer a soluções alternativas de identificação, tem sido um processo existencial cujo sucesso imprevisto foi a constituição de sua autonomia. De fato, ela não se definiu nos gestos que fogem das normas, mas se consolidou em gestos autênticos de concentração sobre si mesma. Esta explicação a permitiu observar que sua conduta não surgiu apenas de sua rebelião ou participação negativa, mas de outra coisa que não era possível individualizar antes do feminismo. Em vez disso, o feminismo, em certos aspectos, se desenvolveu na consciência da mulher que luta contra o patriarcado dentro do terreno deste. O vazio de humanidade que é possível perceber nela, do ponto de vista patriarcal, se transforma, por outro lado, na necessidade de humanidade como presença de si mesma.

Nas tendências pragmáticas mais recentes, os pesquisadores que tentam resolver as dificuldades sexuais de casais descobriram que os melhores resultados são alcançados desenvolvendo entre os parceiros, sobre uma base científica do correto comportamento sexual, os condicionamentos emocionais que levam a um coito satisfatório. Assim, a mulher é estimulada, às vezes depois de anos de casamento sexualmente bloqueado, a desenvolver os reflexos sensíveis à penetração e é influenciada a produzir emoções concomitantes que levam à excitação e ao orgasmo.

O engano específico da mulher vaginal reside no fato de que ela atinge o clímax na penetração mediante o estabelecimento de um reflexo condicionado de sensações tais como “seu pênis é parte do meu ser, minha vagina é parte do seu”, ou seja, através da percepção “dessa” relação, ao passo que o homem obtém o orgasmo automaticamente nessa ou em outra relação e com qualquer tipo de sensações ou fantasias eróticas, que ele pode inserir à vontade.

Esse orgasmo vaginal que para Freud era fruto de um amadurecimento psicossexual da mulher, para o feminismo é produto de sua adaptação psicossocial.

“O diagnóstico de disfunção orgástica primária é admitido quando a mulher nunca teve sequer um orgasmo em toda a sua vida. Não existe disfunção sexual masculina comparável a isso… A mulher acometida de insuficiência orgástica masturbatória não obtém alívio orgástico nem por automanipulação, nem em manipulação do companheiro, nem em experiências homossexuais, nem em experiências heterossexuais. Pode alcançar e alcança a expressão orgástica durante a penetração. A insuficiência orgástica durante o coito é a disfunção que sofrem muitas mulheres que nunca obtiveram orgasmo durante a penetração. Nesta categoria entram as mulheres que são capazes de se masturbar e ser masturbadas até o orgasmo. Ao lado dessas declarações de Masters e Johnson que, diferentemente da psicanálise, ao menos equiparam a condição das insuficiências orgásticas durante a estimulação direta ou indireta do clitóris, lemos: “As influências que pesam sobre a balança da resposta sexual feminina são múltiplas. Por sorte, os dois sistemas de influência mais importantes — o biofísico e o psicossocial — conciliam tais variáveis mediante uma interação de caráter involuntário. Se não existisse a probabilidade de tal mistura as ocasiões de experiência orgástica femininas seriam relativamente poucas.” E, ao mesmo tempo: “A facilidade da resposta fisiológica da mulher às tensões sexuais e sua capacidade de obter alívio orgástico nunca foram avaliadas em seu justo valor”. Parecia estar muito próximo de uma possível reflexão: que a atividade do coito, em uma altíssima porcentagem, carece de descarga orgástica, visto que o modelo sexual penetrativo requer uma disposição psicossocial em relação ao outro ao qual a mulher está cada vez menos inclinada a ceder. Tanto é assim que Master e Johnson afirmam que a mulher, no coito coroado pelo orgasmo, responde sexualmente mais ao sistema psicossocial que à ação do sistema biofísico. Isso é demonstrado pelo fato de que, “em situação de deficiência física avançada, a força de identificação com um parceiro amado pode dar impulso orgástico a uma mulher fisicamente destinada a não-reação sexual.” Naturalmente, essa reflexão não foi concebida; efetivamente, os investigadores em questão mantêm firme o modelo sexual penetrativo, como, sabe-se lá por que, uma infeliz obrigação da espécie feminina. É evidente que existe uma cadeia de dificuldades que um “parceiro” impõe ao outro, e o funcionamento adequado desta cadeia acaba sendo uma espécie de aprendizado voluntário da mulher de uma mistificação, a qual, como resposta de todo o seu ser, ela deseja por fim. “Por uma razão desconhecida”, concluem Master e Johnson, sobre a função sexual feminina, “se revela um tal impasse no processo de adaptação sociossexual que o desejo da mulher se choca com o medo ou a convicção de que seu papel como entidade sexual carece do elemento insubstituível representado por ela mesma como indivíduo.”

Esta sensação da mulher que indica uma sexualidade dissociada de sua pessoa é também o motivo pelo qual surge a inveja do pênis. De fato, o que mais pode ser essa inveja senão o desejo de uma sexualidade não complementar, portanto não ligada a um destino de dependência contrastante com os impulsos à autonomia de quem se sente indivíduo? Ao invejar o pênis e recusar seu papel, o que mais a mulher expressa senão a necessidade da verdade sobre o seu sexo que é, precisamente, um órgão equivalente ao pênis: um órgão próprio, e não uma cavidade que representa somente incompletude, receptividade e espera? Qual é o sentido de falar do clitóris como sendo um “órgão único no conjunto da anatomia humana”? É um sexo, simplesmente, e tem uma relação equivalente ao pênis enquanto centro do prazer, mas equivalência não significa igualdade em escala reduzida. De fato, não sobe, não penetra, não emite esperma nem urina, portanto não pode proporcionar à mulher nenhuma participação nessas experiências típicas da virilidade às quais o mito patriarcal fálico está ligado. Em vez disso, tem uma peculiaridade única: permite orgasmos múltiplos e ininterruptos se submetidos à estimulação adequada. Então aconteceu isso: o sexo que se apresenta como um órgão específico do prazer, portanto do orgasmo, é o que, na cultura patriarcal, foi mantido oculto e inutilizado em benefício do sexo do homem. Este último, em desvantagem por conta de sua função procriadora, fez recair sobre as mulheres todas as contradições por ele causadas. Isso constitui um nó de opressão tal na cultura masculina que não nos cansamos de repetir: nos leva a um absurdo que a duras penas conseguimos que fosse considerado histórico[8].

“Além de servir para a cópula, o pênis também é usado pelos mamíferos para urinar e a urina serve, por sua vez, com bastante frequência, para demarcar território. Em regra, a tarefa de traçar os limites corresponde aos animais de mais alta hierarquia, ao chefe, quando se trata de animais que têm vida social… A ereção do pênis indica a origem comum das duas formas de comportamento, a do animal que demarca o território através da urina e a do animal que copula… Entre os macacos, mesmo entre os mais evoluídos do velho mundo, o pênis é exibido ostensivamente. Como esses animais já não vivem mais em territórios estabelecidos, delimitados por vestígios olfativos, a exibição dos genitais serve para demonstrar qual é a linha momentânea de demarcação estabelecida pelo grupo. Os machos agem como sentinela com o pênis muito protuberante, o que por si só tem um caráter claramente demonstrativo.” (W. Wickler.)

A ausência de pênis na mulher é a garantia de sua falta de agressividade biológica. Ela é de uma espécie diferente da do homem, com uma outra história: por esta razão não acreditamos em valores femininos contrapostos aos masculinos como um bem idealisticamente à disposição de todos, mas acreditamos nas mulheres e nos valores que pertencem à experiência de quem, ainda que quisesse triunfar, acabaria morrendo de cansaço e alienação ao enfrentar a vida com a agressividade que atua no homem, a qual ele justifica em sua cultura. O homem, e apenas o homem, teve a capacidade de se tornar perigoso para a existência mesma do planeta: a metade do gênero humano não pode continuar assistindo impotente esta preparação para a catástrofe.

A desilusão que o feminismo teve com os movimentos hippies decorre do fato de que o jovem que não faz guerra, mas faz amor, acaba restabelecendo, a despeito de si mesmo, aquele funcionamento que o confirma como defensor do núcleo primário do patriarcado. De fato, enquanto tenta encontrar uma saída para os males que afligem a sociedade atual através da realização de ideais comunitários, antirrepressivos, antiautoritários, revindicados por toda cultura e religião, escapa-lhe um elemento essencial que é justamente sua não aceitação da autoconsciência feminista. O convite para o amor é uma fórmula perigosamente fascinante porque atribui um novo valor, pureza e aura milagrosa ao modelo sexual masculino, reforçando o mito da bondade arcaica do casal e de seus respectivos papéis. A mulher feminista não acredita no amor patriarcal como um antídoto para a guerra, porque em ambos ela vê momentos que não se excluem reciprocamente, mas integram o cerne de uma civilização onde impera a imagem viril e descobre que é esse modelo de virilidade a verdadeira expressão da superioridade do macho e, consequentemente, a base de toda belicosidade. Nas psicólogas e psicanalistas que se ocuparam da sexualidade feminina, a certeza do sofrimento da mulher diante do fato de ela estar destinada a uma sexualidade vaginal alcança níveis de credibilidade e participação insuperáveis. A ortodoxia dessas profissionais fiéis à linha cultural masculina é ainda mais absurda: com crueldade masoquista elas rejeitam todas as evidências a fim de desenvolver e reafirmar as motivações que colocam a normalidade da mulher na superação da fase clitoriana, para que se aceite a vaginalidade, mesmo que não leve ao orgasmo.

Enquanto no mundo masculino a mulher vaginal tem sido a preferida, a mulher clitoriana, ao revelar o mecanismo da virilidade, atraiu para si toda a hostilidade do homem. O homem necessita de um pacto de aliança com a mulher, no âmbito deste pacto, qualquer dissidência é admissível, mas aventurar-se fora dele implica uma pressão psíquica inconcebível. A psicanálise tem perseguido a mulher clitoriana criando uma espécie de gueto dentro da mesma discriminação entre os sexos. Ao propor como objetivo a cura da humanidade, projetava, na realidade, uma restauração do patriarcado: e é aqui que a mulher clitoriana parecia querer estragar o projeto. Uma parte da humanidade feminina não fez do homem o centro de suas próprias emoções: manifestava gostos de um sujeito autônomo, possuía pensamento, orgulho, coragem e dignidade; era, portanto, uma parte enferma, traumatizada, neurótica e frígida. Os sexólogos alemães e ingleses do final do século XIX estavam certos quando reconheceram que era normal mulheres terem orgasmo tanto clitoriano quanto vaginal, mas lhes passou despercebido o que Freud descobriu, isto é, que só a mulher vaginal é passiva e portanto, feminina, porque se adapta ao papel necessário para a manutenção do casal. Será significativo reler os textos que aludem — correta e oportunamente — à mulher clitoriana: podem falar muito sobre as disposições patriarcais frente ao outro sexo; à luz desta renovada caça às bruxas, resta iluminada a personalidade do homem, seus terrores e seus abusos. A mulher vaginal, ao romper a simbiose com o homem, reencontra na mulher clitoriana uma totalidade de experiências das quais é privada pelo homem, isso instiga nela uma atitude de defesa e de incompreensão que, na realidade, pertence a ele.

A passividade não é a essência da feminilidade, mas o efeito de uma opressão que torna a mulher inoperante no mundo. A mulher clitoriana representa a transmissão de uma feminilidade que não se reconhece na essência passiva.

O processo de substituição vaginal corresponde, para a mulher, a um processo de identificação com o parceiro. Sabemos, por exemplo, que uma mulher não orgástica pode finalmente obter o orgasmo com um homem, sem que isso implique a repetibilidade do fenômeno com outros. É sempre a monogamia feminina que encontramos no processo de aculturação. A mulher clitoriana, por outro lado, é aquela cujo funcionamento sexual não se presta ao jogo de identificação com o outro: ela fica em estado de alerta quando é induzida a atuar em uníssono com o macho. Algo a adverte, ainda que não ao nível da consciência, que quando o inferior é acima de tudo passivo, aciona-se uma armadilha de longa data e comprovada eficácia. Pode ser que ela até deseje ultrapassar este obstáculo para realizar-se dentro dos valores do casal patriarcal, impondo-se a si mesma, a partir do exterior, um comportamento adequado; mas este modo responde simplesmente a um conformismo, que na mulher vaginal está ausente, uma vez que esta última atua sob uma forma de plágio que engloba totalmente a adesão ao homem. Para a cultura masculina, se a mulher clitoriana se não se identifica afetivamente com seu papel, é uma fracassada; para o feminismo, que parte da inaceitabilidade do papel, a clioriana tem um ponto de integridade histórica recuperável para além de qualquer dissociação e que permite reencontrar a própria identidade, intuída na mulher vaginal, porquanto a aceitação da escravidão a perturba fortemente. Hoje em dia, a forma atualizada de conceber a vaginalidade é atrair a jovem clitoriana para o coito penetrativo com a promessa de alcançar “algo mais”. Este mecanismo parece desprovido de malícia patriarcal, mas não é bem assim: de fato, se a mulher transformada em vaginal sai do louvável estado em que o homem a colocou para fazer dela seu porta-voz, este pode revelar às mulheres que, no que tange à questão sexual, a divisão consiste em ter ou não ter orgasmo, e não nas diferentes qualidades de orgasmo. Por que, ao invés disso, o homem não dá a ela aqueles orgasmos múltiplos que o clitóris pode proporcionar. Esse é um ponto quase ignorado da cultura sexual masculina e, no entanto, o prazer feminino pode ser verdadeiramente ainda mais amplo e variado. Para aqueles que sustentam, pelo bem da mulher, que sua plenitude está no orgasmo vaginal, o feminismo responde que aquele “algo mais” estará, quem sabe, na renovação do erotismo mediante a relação com um “parceiro” diferente e não na busca por uma perfectibilidade mitológica do casal, coisa que o homem sempre praticou, com a experiência de um ser privilegiado, e, consequentemente, alienada pela instrumentalização da mulher e por sua cegueira frente a ela, impedindo que sua companheira vaginal tomasse conta disso, convencendo-a de que seu abraço sexual[9] é insuperável.

A mulher clitoriana pode ser mais desejada por um homem à medida que ele a identifica como uma mulher extravagante, poética, que prolonga e estimula o sabor da caça difícil e da presa preciosa, mas assim que ele descobre a estrutura de um indivíduo por trás das aparências de uma feminilidade insuspeita, ele não suporta a reciprocidade de consciência e julgamento, e deixa, se retira, se isola e se reconforta com outra união tranquila, maternal.

A transição da cópula em posição posterior[10] à cópula em posição ventral[11], fundamental na raça humana, é atribuída por zoólogos (D. Morris) à fêmea “que conseguiu deslocar o interesse do macho para a sua zona frontal, reproduzindo o inchado de seus seios e dos lábios os sinais sexuais (nádegas e lábios vaginais) que forneceram a ele a excitação na fase precedente. Essa transição cria uma relação entre satisfação e identidade do companheiro e desenvolve sensações táteis provenientes da parte anterior do corpo, mas sobretudo permite que a fêmea estimule o clitóris e a área púbica através da movimentação rítmica e do contato corporal com o macho, iniciando assim sua escalada filogenética em direção ao prazer e ao orgasmo. Uma vez que o clitóris é equivalente ao pênis, e o orgasmo da fêmea humana durante a cópula se deve a ele, Morris levanta a hipótese de que essa reação, sendo única entre as fêmeas de todos os primatas, “talvez, em sentido evolutivo”, seja uma reação pseudo-masculina. Segundo ele, o coito ventral tornou possível uma forma de “masturbação” do clitóris, o que levou a fêmea humana a desenvolver uma sensibilidade particular neste órgão. Todavia, este órgão já existia, então, como é possível que ele não tenha evoluído paralelamente ao do macho como órgão de prazer? Será talvez porque no macho ambas as funções encontram-se unidas, a reprodutora e a orgástica, enquanto as exigências particulares do mecanismo reprodutor da fêmea provocaram uma dualidade de funções que lhe tem sido fatal, precisamente porque, sendo o sexo masculino o dominante, e carecendo dessa dualidade, lhe impôs seu modelo tudo-em-um de prazer-reprodução, isto é, o prazer vaginal? Em tal situação, que sentido haveria em falar de “pseudomasculino”? Seja como for, aqueles que gostariam de manter uma distinção da estrutura sexual entre fêmea-macho na relação vagina-pênis, colocando a existência do clitóris em uma outra vertente, devem retomar o curso da história natural da fêmea dos primatas com seu próprio período limitado de disponibilidade sexual, durante o qual, não conhecendo o orgasmo, não conhece saciedade ou resolução do impulso sexual. Tão logo a fêmea humana consegue orientar a necessidade de reprodução para suas tensões de prazer e orgasmo, já deu um passo em direção ao fim alcançado pelo macho, já “tomou emprestada” uma manifestação própria do outro. É somente nesse sentido amplo e remoto que se pode falar em masculinização da fêmea humana. Agora já é tarde demais para retroceder frente a sua ulterior fase evolutiva: milhares de anos atrás as antecessoras de nossa espécie decidiram de outro modo, optando pelo coito frontal e pela estimulação do clitóris, ou seja, optando por alcançar o orgasmo. O que foi possível — e aqui ainda é o zoólogo que fala — no momento da formação de uma organização humana por casais, através “da imensa satisfação que a fêmea humana obtém do ato de colaboração sexual com o parceiro”. Encontramos aqui novamente confirmada a hipótese da ligação psíquica de dependência e de gratificação da fêmea com o surgimento do seu gozo, na condição que será a de servidão patriarcal.

A impropriamente chamada masculinização da fêmea não é, portanto, um acontecimento atual, mas sim uma direção evolutiva que pertence à pré-história: não tem nada a ver com o significado contingente usado pela psicologia e pela psicanálise para definir a mulher clitoriana. Na verdade, serve para desmistificar o preconceito patriarcal sobre o clitóris e limpar o campo das resistências de quem, identificando a feminilidade como um pólo oposto à virilidade, a mede segundo sua maior ou menor capacidade de responder positivamente ao coito. O coito humano foi o primeiro passo na experiência do prazer, um estágio de sujeição ao poder e ao prestígio masculino: a afirmação do clitóris como sexo próprio é a fase atual de libertação da mulher que descobre sua identidade na trajetória da espécie, da história e no presente.

Para nós, mulheres, ler Reich nos dá vertigem: “a genitalidade clitoriana é um substituto neurótico de uma excitação genital bloqueada”. Por que? Porque “o orgasmo completo, em sentido orgonótico, inclui, além do clímax, as sucessivas contrações involuntárias”. Naturalmente. Mas o que fez Reich acreditar que essa fenomenologia é prerrogativa do orgasmo vaginal? Não apenas pesquisas científicas sobre o assunto, mas sobretudo a autoconsciência das mulheres em relação ao sexo confirmaram que o orgasmo clitoriano — naquelas que, como indivíduo, foram capazes de afirmá-lo conectando-o a si mesma sem dissociações — tem todas as prerrogativas de “contração total involuntária” do orgasmo e culmina em completa distensão.

Reich, tendo reconhecido na expressão fálica do homem um comportamento fascista, e tendo explicado isso como um efeito da repressão sexual, envolveu o clitóris, enquanto homólogo feminino do pênis, em sua rejeição da genitalidade “fálico-pornográfico-clitoriano que existe há 6 ou 10 mil anos”.

Mas não é que ele rejeite o pênis, na verdade, ele o reinstala na vagina feminina de forma ainda mais cuidadosa do que já foi feito em 6 ou 10 mil anos, e mais uma vez, desde então, extirpa o clitóris. E a isso ele chama “mover-se em direção ao funcionamento orgonótico vaginal universal como um etapa sucessiva da filogênese! Hoje o feminismo deve esclarecer os pontos da teoria de Reich que lhe dizem respeito, porque, convertido em astro nascente do “underground” da psicanálise e do autoholocausto pelas ideias em que acreditava — glória reservada aos homens — Reich, como todos os renovadores patriarcais, se converteram em uma autoridade em cujo nome a jovem ou a mulher são sopesadas e envilecidas com novos argumentos com parâmetros tão velhos quanto o mundo.

O casal patriarcal é o casal pênis-vagina, marido e mulher, pai e mãe da cultura animal reprodutiva: sua relação não foi determinada com base no funcionamento sexual, mas sim com base no funcionamento da reprodução à qual o sexo feminino tem sido subordinado. A mulher vaginal é produto desta cultura: é mulher do patriarca e sede de todo mito materno; é a mulher escrava que transmite a cadeia de sujeição graças à qual o domínio masculino perdurou apesar de qualquer mudança histórica. O imprevisto no mundo não é a revolução sexual masculina, o desinibir-se que leva a uma renovação do prestígio do coito entre o casal, grupo, comunidade ou orgia universal, mas sim a ruptura do modelo sexual pênis-vagina. Neste imprevisto está a possível dissolução dos nós insolúveis criados pela cultura patriarcal que subjugou a mulher mediante a sacralização da relação emocional superior-inferior.

Itália, verão de 1971.

Notas:

[1]- Nota da Tradutora (N. da T).: neste tradução, optei por traduzir o termo “clitorideo” e “clitoridea” como “clitoriano” e “clitoriana” por compreender que o sufixo “ano/ana” expressa melhor o sentido do genitivo “clitoridea”: “de clitoride”, usados no original em italiano, reforçando a ideia de origem: orgasmo que se origina no clitóris.

[2] vulvamtilliadum@inventati.org

[3]- N. da T.: No momento em que este texto foi escrito, a questão da superpopulação era um problema amplamente discutido nas sociedades ocidentais.

[4]- Mesmo reconhecendo que o fenômeno orgástico é único para cada mulher e de acordo com os estímulos próprios que o facilita, chamamos aqui de mulher vaginal a que obtém o orgasmo durante a penetração do pênis na vagina e mulher clitoriana a que o obtém durante as carícias sobre o clitóris. E chamamos de orgasmo vaginal o obtido durante a penetração do pênis na vagina e orgasmo clitoriano o obtido durante as carícias sobre o clitóris (nota de rodapé presente no original).

[5]-Termo de paragon, no original: termo de comparação, termo em relação ao qual algo é comparado, a medida, o ponto zero.

[6]- N. da T. : Acredito que Carla Lonzi não utilizou o termo “automático” no sentido de “involuntário” ou “que se opera sem a participação da vontade”, ou, ainda, “de forma instantânea”, mas, sim no sentido de: sem intermediário, agindo por conta própria, sem intervenção externa. Ou seja, o orgasmo que se obtém por si própria, por si próprio, por vontade própria, ou, ainda, pela estimulação direta do órgão que produz o orgasmo: o clitóris na mulher; o pênis, no homem.

[7]- N.da T.: No original: “non scontata”, não óbvia, não tomado como certo, não predeterminada.

[8]- Histórico, cultural, em oposição à natural, biológico, essencial.

[9]- Coito/sexo penetrativo.

[10]- Parte posterior ou dorsal: parte de trás da pessoa, costas.

[11]- Parte anterior ou ventral: parte da frente de uma pessoa.

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