Mulheres em disputa

vulvamtilliandum
3 min readMar 7, 2022

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Mulheres são um recurso disputado por homens oprimidos por raça e/ou classe contra o monopólio exercido sobre elas pela classe sexual e racial dominante.

A entrada das próprias mulheres nessa disputa é o que justifica o ódio desses homens oprimidos por raça e/ou classe contra o feminismo. Sentem como se a luta contra a opressão de raça e/ou classe fosse impossível sem o alívio e os injustos privilégios provenientes da opressão que exercem sobre as mulheres de sua raça e/ou classe que, não por acaso, é meticulosamente garantida pelo grupo sexual e racial dominante.

Antes, o feminismo era acusado de burguês. Era o xingamento mais negativo que poderia haver até meados da década de 1980. Christine Delphy, em seu livro intitulado “Close to home: a materialist analysis of women’s oppression”, analisou o discurso antifeminista dessa esquerda e ofereceu várias chaves para a compreensão do fenômeno.

Mulheres vivenciam a opressão de classe de maneira diferente da dos homens. Enquanto eles são explorados pelo patrão diretamente, no espaço formal de trabalho, as mulheres são ainda mais exploradas que eles tanto na forma direta (no espaço de trabalho), quanto na forma indireta, através do exploração do trabalho doméstico no âmbito da família. Mas aos homens, obviamente, interessa apenas atacar aquilo que mais os atinge, mantendo aquilo que os beneficia. É com esse objetivo que eles vão buscar captar para si mesmos e suas lutas específicas o trabalho ativista, a compaixão e a energia afetiva das mulheres, tanto das acusadas de burguesas, quanto das trabalhadoras. E para isso, lançam mão de mentiras, falácias, distorções e, principalmente, contribuem para invisibilizar a real condição indigna das mulheres de sua classe.

Mas veja a ironia. Não há nada mais anticapitalista que atuar para o aumento das liberdades das mulheres pobres e trabalhadoras. Não há nada mais anticapitalista que atuar para a redução da violência econômica sobre mulheres pobres e trabalhadoras. Não há nada mais anticapitalista que unir-se às mulheres pobres e trabalhadoras, fortalecendo-as em sua luta contra a exploração. O capitalismo é atingido no coração. Quiseram? Não.

Atualmente, o feminismo é acusado de branco. Este tem sido o xingamento mais duro que se pode fazer contra o feminismo. Isto acontece porque homens negros também disputam o trabalho ativista das mulheres, e não apenas das mulheres negras. Apresentam-se como os mais oprimidos, o que obviamente não são, pois há quem, além de sofrer opressão de raça e classe, sofre também opressão por sexo: as mulheres indígenas e negras.

E tal como a opressão de classe, a opressão racial não se materializa da mesma forma contra homens e mulheres. O modo como mulheres experimentam a opressão de raça abrange o modo como os homens a experienciam (violência policial, encarceramento em massa, letalidade policial, maior rigor judicial, interdição nos espaços de consumo e de luxo, empobrecimento forçado, etc), mas a condição sexual e de classe faz abrir um leque ainda mais variado e intenso de violências (feminicídio, estupro, violência doméstica, pedofilia, gravidez precoce, abandono paterno, maternidade sozinha, prostituição etc), o que torna a luta contra a opressão racial, sexual e de classe ainda mais difícil para a mulher racializada e pobre.

Portanto, tal como na opressão de classe, não há nada mais antirracista do que priorizar mulheres racializadas. Não há forma de ser mais antirracista que atuar para o aumento das liberdades das mulheres racializadas, não há nada mais antirracista que apoiar a luta das mulheres racializadas por uma vida livre de violência masculina, econômica, institucional e policial.

O feminismo é para as mulheres. Todas. O feminismo é odiado, difamado e distorcido porque é um movimento político criado exclusivamente por mulheres que fornece instrumentos teóricos e discursivos para que, pela primeira vez na história, mulheres entrem conscientemente na disputa por si mesmas. O feminismo é odiado, já dizia Andrea Dworkin, porque as mulheres são odiadas.

Ter um grupo abaixo de si para oprimir é tentador, praticamente irrecusável. Essa é uma das razões pelas quais as mulheres não podem se dar ao luxo de deixar que suas energias sejam drenadas para as lutas dos homens em detrimento de suas próprias lutas. Não há diálogo possível enquanto os homens oprimidos por raça e/ou classe não renunciarem ao poder de nos oprimir, enquanto considerarem um direito inalienável o usufruto dos injustos privilégios da exploração de nossa vulnerabilidade, vulnerabilidade essa garantida por seus reais inimigos.

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