O feminismo dói?

vulvamtilliandum
3 min readAug 31, 2021

Estive pensando sobre a expressão “o feminismo dói”, usada para nos referir ao feminismo que vai à raiz do problema, ao feminismo revolucionário.

E considerei a seguinte metáfora.

Imagine que, devido a condições ambientais artificialmente criadas, você e as pessoas do seu sexo sofrem de uma doença ocular que reduz sensivelmente a capacidade visual e, por ter sido sempre assim, vocês não sabem que podem ver o mundo de uma maneira diferente. Vocês não têm outras referências de normalidade.

Então, um belo dia, você experimenta óculos especiais, criados exclusivamente para possibilitar a visão nesse ambiente turvo, opaco. Tais óculos te permitem enxergar tudo com muito mais nitidez. Porém, por nunca ter enxergado bem antes, a luz, as cores intensas, os diversos níveis de profundidade, a imensa quantidade de detalhes e nuances, tudo configura um número tão grande de informações e estímulos que você sente dor, uma dor física. Tem medo, fica confusa e chega a ter dúvidas se deseja mesmo ver melhor. Mas não recua, segue em frente e tão logo se acostuma com a nova aquisição, o que você vê? Um cenário de horror.

Sanguessugas por todo o seu corpo, então você entende as marcas, a anemia e a fraqueza; você descobre que entre os caminhos possíveis, escolhia os mais arriscados, com maior número de obstáculos e compreende por que chegava toda machucada ao fim da travessia; você percebe que não saltava os buracos, não desviava dos obstáculos… você nota que estava acostumada a sentir dor e, por vezes, sentia prazer com a dor, pois era a única fonte garantida de emoções; por vezes, não sabia a origem da depressão e da ansiedade.

Você também passa a perceber que as pessoas do sexo oposto, que criaram propositalmente esse ambiente, e para as quais todo o cenário era translúcido, se beneficiavam de sua condição. Os melhores deles tinham atitude paternal. Jurando amor, ofereciam-se tão apenas a te guiar nesse ambiente, nunca a desfazer a opacidade dele. Quando esta ajuda contribuia para você se machucar menos, você chegava a entregar sua vida na mão desses “aliados”, que a recebia de bom grado.

Você então nota, aterrada, o quanto foi induzida a colaborar para seu próprio sofrimento e dependência e, isso, num primeiro momento, é desesperador.

Conforme você se acostuma a enxergar e, pouco a pouco, deixa aquele lugar de ressentimento, você passa a agir. Não quer mais ser guiada, pois vê com os próprios olhos os perigos. Você salta os buracos, desvia-se dos obstáculos com mais facilidade, remove, ainda com alguma dor, os parasitas que tinha pelo corpo, sobretudo pescoço e costas. Já não está mais anêmica e fraca. Começa a desfrutar de uma visão mais perfeita, já pode escolher sozinha e com mais segurança qual caminho seguir e aufere benefícios reais da nova condição.

Estas mulheres começam a dizer em voz alta o que estão vendo e do que estão desfrutando e buscam facilitar o acesso dos óculos ao máximo possível de mulheres.

Mas aí, os membros do sexo oposto e até algumas mulheres submissas, sentindo-se ameaçados, reagem espalhando a ideia de que a atitude mais moderna e inclusiva do momento é aceitar que o “enxergar com nitidez” não existe, pois cada pessoa tem sua própria forma de enxergar (mal) o mundo e que isso é um direito inalienável, que deve ser respeitado. Eles então desenvolvem óculos que possibilitam apenas uma visão parcial do mundo e tão turva quanto a anterior.

As mulheres sem óculos algum não conseguem entender. E, por segurança, fazem o que sempre fizeram. Agarram-se ainda mais forte ao braço do membro do sexo oposto que sempre lhes guiou. Muitas hostilizarão as mulheres que enxergam por considerá-las criadoras de problemas, perturbadoras da paz, preconceituosas, elitistas, excludentes e arrogantes.

As mulheres que puseram os óculos corretos percebem que estão em perigo e compreendem que só facilitando o acesso de todas as mulheres aos referidos óculos é que terão condições de atuar na fonte da opacidade que limita às mulheres enxergarem, até que óculos nenhum sejam necessários, pois todas e todos poderão enxergar as coisas como são, sem quaisquer dispositivos intermediários.

Os óculos são o feminismo e as mulheres que passaram a enxergar com eles, as feministas.

Pergunto: o que de fato dói? O feminismo ou a realidade que o feminismo permite enxergar?

Nomeemos o feminismo revolucionário positivamente, para que não haja dúvida do quão necessário ele é para a sobrevivência das mulheres, para nossa saúde física e mental.

Our blood: prophecies and discourses on sexual politics, de Andrea Dworkin, e Irmã outsider, de Audre Lorde, inspiraram a produção deste texto.

--

--