Publicar ou perecer? Um conto do Dia das Mães

vulvamtilliandum
4 min readMay 7, 2022

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Acabei de encontrar uma amiga no bairro. Por circunstâncias da vida, fazia anos que não nos falávamos.

Sou cerca de 12 anos mais jovem que ela, mas fomos mães no mesmo período e nos conhecemos por conta da maternidade. Nossos filhos estudaram na mesma creche, a famosa e bem conceituada Creche Central da USP. O vínculo dela com a USP era como funcionária e o meu como estudante. Ela já tinha uma vida financeira estável e a minha era bastante precária.

Tínhamos (e ainda temos) muitas diferenças. E, de fato, eu nunca entendi muito bem meu bem querer por ela. Uma mulher branca absurdamente transparente em seus preconceitos e medos. Comicamente transparente.

Hétero, casada, um filho.

Eu sempre me senti a mais velha da relação, a que dava conselhos, a quem ela vez ou outra recorria para obter algum alívio.

Na época da creche, era frequente ela me dar carona. Lembro de um dia em que ela veio toda angustiada:

-Brisa, preciso te perguntar algo. Não sei nem por onde começar!

Na ocasião, meu filho com 2 anos de idade havia descoberto seu pênis e gostava muito de brincar com ele quando estava nu. Uma vez vestido, esquecia do “órgão viril”. Sabendo disso, sem dizer palavra, eu regulava os momentos em que ele podia se masturbar com segurança e privacidade.

Conversando com outras mães, algumas mencionaram que suas crianças estavam em fase semelhante ou passaram por ela. Algumas descrições da masturbação das meninas chegavam a causar inveja, ante o prazer que elas demonstravam colher da descoberta e auto estímulo do clitóris.

Nessa época também, eu havia acabado de ler Foucault, autor aclamado pelo queer, de cuja História da sexualidade eu só havia entendido fragmentos e um dos fragmentos que entendi e me ajudou a lidar com tranquilidade com meu filho, foi que crianças podem ter, e não raramente têm, prazer sexual com seus próprios corpos.

Assim, facilitando a vida da minha amiga, eu disse, sem conseguir conter o riso:

-Já sei. Seu filho se masturba.

Ela ficou envergonhadíssima.

-Brisa do céu… o que as professoras da creche vão pensar!?

Conversei com ela, falei que era normal, falei do meu filho e sobre a experiência de outras amigas mães, falei que era possível que as professoras já estivessem acostumadas a lidar corretamente com essas situações e ela pareceu se acalmar mais.

De fato, fui mais solidária com ela que temia o julgamento sobre si e sobre suas práticas íntimas com o marido do que com seu filho indefeso, cujo manejo de sua sexualidade estava sob grave risco. No entanto, se eu fosse escutada, certamente a criança também seria beneficiada.

Quando nos conhecemos, eu não era feminista nem havia me assumido lésbica mas sempre busquei, dentro do meu contexto, com o conhecimento que eu tinha, a coerência entre meu discurso e prática. Penso que o que eu sentia por minha amiga era um tipo de compaixão. Não era uma mulher branca arrogante, ignorante, crente no mito da meritocracia e sádica com as mulheres de menor status social. O que eu via era uma mulher angustiada, hesitante, cheia de medo e culpa. Portanto, uma mulher em sofrimento.

Hoje, depois de muitos anos, nos reencontramos por acaso. Foi um encontro feliz. Papeamos, constatamos que nossos filhos farão 18 anos neste ano, ela revelou o quanto estava frustrada com a maternidade e, mais uma vez, me solidarizei com ela. Sei que grande parte de sua frustração com a maternidade advém do fracasso não admitido de seu casamento com o pai de seu filho.

Quando falei sobre meu novo modo de vida ela, não sei exatamente por que, dada sua fidelidade ao aceito e ao “normal”, disse que estava feliz de saber que eu tinha uma namorada, conquanto ela gostasse bastante do meu ex. Talvez, quem sabe, uma pequena realização pessoal através de mim.

Durante a conversa, ela perguntou se eu continuava escrevendo porque ela gostava muito de ler o que eu escrevia no Facebook. Saí do Facebook há uns 5 anos. Meu posicionamento político na ocasião era mais anticapitalista e antirracista. Eu ainda não havia conhecido o feminismo radical. Saí daquela rede social porque reconheci que as ferramentas que o antirracismo e o anticapitalismo me provinham, conquanto imprescindíveis, eram insuficientes para eu entender a realidade e, de repente, me vi falando só sobre minha maternagem, glorificando-a, de certa forma. Eu sentia que tinha algo de errado nisso. Era como se a maternidade tivesse comido meu cérebro. E sem ter nada relevante (no meu sentir) para falar, cancelei minha conta.

Vez ou outra, encontro mulheres, brancas e negras, que revelam para mim que o que eu escrevia no Facebook as atravessava de alguma forma, em geral, positivamente.

Eu me considero uma cronista. Sei que sou boa relatando e analisando pequenos acontecimentos do cotidiano. E o era mesmo antes de acessar as ferramentas do feminismo.

Foi muito bom ouvir minha amiga dizer que gostava de ler meus textos e que sentia falta deles. Não é a primeira vez que escuto isso, nem a segunda, nem a terceira… Eu escrevo meus pensamentos todos os dias. Raramente, passo um dia inteiro sem escrever, no mínimo, um ou dois parágrafos. E me perguntei por que mesmo eu ainda não tenho um livro publicado. E por que eu já deveria ter?

Talvez…apenas talvez seja exatamente pelo mesmo motivo que possibilitou o nosso encontro.

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